Também os romanos construíram em cima do mar algarvio e este tudo levou

Os antigos povoados romanos foram destruídas pelo avanço do mar mas agora constroem-se empreendimentos turísticos nesses mesmos lugares. Não aprendemos nada com a história?

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O sítio romano “Loulé Velho”, ao lado de Vale do Lobo, desapareceu com o avanço do mar e a erosão da costa. O local é conhecido desde o século XVIII mas o património está feito em cacos. As marés-vivas, desde há décadas, deixam na praia as fracturas expostas dos vestígios dos povos que habitaram o sul da Lusitânia e que estão a ser estudados.

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O sítio romano “Loulé Velho”, ao lado de Vale do Lobo, desapareceu com o avanço do mar e a erosão da costa. O local é conhecido desde o século XVIII mas o património está feito em cacos. As marés-vivas, desde há décadas, deixam na praia as fracturas expostas dos vestígios dos povos que habitaram o sul da Lusitânia e que estão a ser estudados.

A maioria das milhares de peças encontradas estão à guarda no museu de Loulé mas há objectos em mãos de particulares. Um desses achados – um peso cilíndrico de lagar-  estará num loteamento da urbanização turística de Vale do Lobo, a servir de peça decorativa. Uma equipa de arqueólogos da Universidade de Lisboa está a fazer a leitura de quase 4 mil registos de pedaços de cerâmicas, vidros, mármore, estuques encontrados neste local, entre as ribeiras do Carcavai e Almargem, desde os anos 80. “Mergulhámos, literalmente, em 40 contentores dos depósitos do museu municipal de Loulé”, diz Rui de Almeida, investigador do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. A descrição do sítio vai ser publicação como monografia em 2021. Mas, até chegar a essa fase, admite, ainda há muito terreno para desbravar, tanto no local como no campo científico. “A melhor defesa do património é a divulgação”, sublinha o investigador, destacando a “colaboração e generosidade de cidadãos que doaram peças ao museu”. No entanto, ainda há materiais por recuperar: “Temos fotografias – tiradas por pessoas que estavam na praia - de um peso cilíndrico de lagar, de vinho ou azeite. Parece que está num loteamento em Vale do Lobo”, avança

Na passada sexta-feira terminou mais uma campanha de prospecção arqueológica, que durou três semanas. Apesar do povoado ser conhecido há quase há três séculos, “nunca foi objecto de uma investigação sistemática”, sublinha. No entanto, em cinco ou seis ocasiões, realizaram-se ali escavações pontuais, suscitadas pelos achados que apareciam à superfície. Em 2010, por exemplo, apareceu uma sepultura na arriba, “possivelmente relacionada com o cemitério tardo romano que ainda se conserva no local”. No total, estão referenciadas uma dezenas de sepulturas mas há indícios de que o sítio romano se prolongaria para o interior, até cerca de uma centena de metros da praia.

 O objectivo do trabalho que está a ser levado a cabo tem em vista “integrar o sítio na rede de povoamento da Lusitânia e enquadrá-lo nas trocas comerciais à escala do império”, adianta Catarina Viegas, professora do Centro Universitário da Faculdade de Letras de Lisboa. Os investigadores chegaram já à conclusão que este antigo povoado teve ocupação desde meados do século I até à antiguidade tardia (séc. VI).

Sobre as duas últimas sepulturas encontradas este Verão (um adulto e uma criança), a arqueóloga lamenta: “Infelizmente encontravam-se em muito mau estado de conservação devido às condições do solo e às raízes dos pinheiros”, enfatiza. Catarina Viegas, cuja tese de doutoramento é sobre Castro Marim e as antigas cidades romanas de Balsa e Ossónoba, traça o plano futuro. “Uma das nossas preocupações sobre o sítio [Loulé Velho, é integrá-lo regionalmente e, depois então, à escala do império romano”.

Por outro lado, a antropóloga Daniela Anselmo, da Universidade de Évora, referindo-se às escavações anteriores, lembra que a história também se faz a partir dos ossos. Descobriu-se, por exemplo, que uma mulher - o sexo é facilmente identificável observando-se a bacia - fracturou um perna, ficou com a coluna afectada, mas conseguiu sobreviver.

Catarina Viegas, responsável pela coordenação dos trabalhos, evoca outros sítios romanos na região de grande importância. É o caso da cidade de Balsa, em Tavira, mas também a Boca do Rio e Martinhal, no concelho de Vila do Bispo, onde houve muito povoados. “A densidade de ocupação de toda a faixa costeira algarvia é muito compatível com a existência sucessiva de pequenos povoados [romanos]” que foram desaparecendo ao longo dos séculos.

A história repete-se quando se fala da ocupação do litoral algarvio e os riscos da destruição pelo mar também estão presentes. Do ponto de vista de ocupação territorial, sublinha a professora, “todos os sítios romanos que estejam virados para os preparados de peixe, e para esta componente marítima, estão sucessivamente ameaçados e destruídos pelo avanço das dinâmicas costeiras e neste caso, o de “Loulé Velho”, foram muito severas”, sublinha.

A investigação deste projecto “LORIVAL- Loulé Velho e o paleoestuário da ribeira de Carcavai: povoamento, interacção e dinâmicas desde a época romana começou em 2018, e resulta de uma parceria entre a Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa/Faculdade de Letras (UNIARQ) e câmara de Loulé.