Esteve pendurada à porta de uma cozinha e agora pode valer seis milhões de euros

Pintura rara de Cimabue, artista florentino do século XIII que foi rival de Duccio e para alguns mestre de Giotto, vai ser leiloada a 27 de Outubro em França.

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Neste pequeno painel executado por Cimabue há mais de 730 anos um grupo de homens faz troça de Cristo Cortesia: Actéon/Cabinet Turquin

É difícil resistir a histórias destas. Obras de arte raras e com centenas de anos, de mestres reconhecidos, encontradas em sótãos e garagens ou em mercados de rua, misturadas com artigos de bricabraque, e vendidas por um punhado de euros põem quase sempre a imaginação a funcionar e as pessoas que com elas se cruzam a pensar: “E se isto acontecesse comigo?”

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É difícil resistir a histórias destas. Obras de arte raras e com centenas de anos, de mestres reconhecidos, encontradas em sótãos e garagens ou em mercados de rua, misturadas com artigos de bricabraque, e vendidas por um punhado de euros põem quase sempre a imaginação a funcionar e as pessoas que com elas se cruzam a pensar: “E se isto acontecesse comigo?”

Desta vez aconteceu em França e a obra em causa — uma pequena pintura em que um grupo de homens zomba de Cristo, pintada há mais de 700 anos por Cenni di Pepo, um artista florentino conhecido como Cimabue (1240-1302) — estava pendurada à porta de uma cozinha, numa casa em Compiègne, cidade nos arredores de Paris.

A proprietária, que não sabe como a obra chegou às mãos da sua família, mandou avaliá-la na esperança de a ver reconhecida como um ícone antigo, mas estava longe de suspeitar que se tratava de uma pintura raríssima, de acordo com os especialistas em arte a que a britânica BBC ou o diário francês Le Monde fazem referência.

Éric Turquin, grande conhecedor do trabalho dos mestres da pintura antiga (um dos que autenticaram o Caravaggio descoberto num sótão de Toulouse cuja autoria continua a alimentar o debate entre os historiadores de arte), acredita que a pequena pintura foi feita por Cimabue. Depois de aceder às conclusões dos vários exames técnicos a que foi submetida e de a comparar com outras obras do artista italiano, Turquin mostrou-se convicto: “Foi feita pela mesma mão”, disse ao jornal francês Le Figaro.

Desta vez, o especialista duvida que venha a haver contestação em relação à autoria. “A atribuição é evidente”, acrescentou ao diário Le Monde, chamando a atenção para o estilo da pintura, para a ornamentação sobre o fundo dourado, para o pontilhado feito a punção.

De acordo com o diário britânico The Guardian, o pequeno painel (25X20 cm) faria parte de um díptico representando em oito cenas a paixão e crucificação de Cristo, e executado em 1280. Há duas cenas desta mesma série na National Gallery de Londres e na Frick Collection, em Nova Iorque, dois importantes museus ocidentais. A de Londres também esteve perdida e foi descoberta por um aristocrata britânico quando estava a esvaziar uma casa de família em Suffolk; acabou por doá-la ao Estado em 2000.

A pintura de Compiègne irá à praça a 27 de Outubro em Senlis, a norte de Paris — ainda segundo o Monde, será a primeira vez em dezenas de anos que uma obra deste primitivo italiano é leiloada. A base de licitação será de quatro milhões de euros, estimando-se que possa vir a chegar aos seis milhões. “Cimabue é um pintor importante que agitou as águas” e não faltam museus, sobretudo italianos, que “sonham” ter nas suas colecções uma obra deste florentino que acabou por morrer em Pisa, assegura Turquin.

Embora ainda muito influenciado pela arte bizantina, Cimabue terá sido dos primeiros artistas a tratar de forma mais naturalista a figura humana, dando-lhe proporções e movimentos próximos da realidade. Giorgio Vasari (1511-1574), o célebre biógrafo dos artistas italianos, dedica-lhe um capítulo no seu Vidas dos Artistas, defendendo, entre outras coisas, que está na génese da pintura italiana e que foi mestre de Giotto, cujo talento natural terá reconhecido de imediato.

Se é verdade que muito do que Vasari escreve sobre Cimabue, à semelhança do que diz sobre outros artistas, foi já desacreditado por vários autores ao longo dos séculos, também é verdade que a importância que lhe atribui na arte do seu tempo é inteiramente merecida. Rival de Duccio (1255-1319), cuja obra é muitas vezes confundida com a sua, Cimabue é referido na Divina Comédia, de Dante Alighieri, que chega a escrever que Giotto (1267-1337) lhe rouba a “fama” que por direito lhe pertencia.

A maior parte da obra de Cimabue pode hoje ser vista na Basílica de São Francisco de Assis (Assis) e em dois dos mais importantes museus do mundo — o Louvre (Paris) e a Galeria dos Uffizi (Florença).