Raquel André colecciona os outros para agarrar a efemeridade
Até 29 de Setembro, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, Raquel André leva para palco a sua Colecção de Artistas. Ou como tenta registar no seu corpo as obras dos outros.
Tudo começou quando Raquel André encontrou na rua uma caixa de papelão repleta de cartas escritas à mão e que diziam respeito à troca de correspondência, ao longo de três décadas, entre uma mulher emigrada para a Bolívia e os seus pais. Eram 650 cartas que lhe preencheram o Verão de 2009, enquanto lia e se inteirava daquela história familiar e organizava as missivas empurradas para o lixo. No final desse período, criou um primeiro espectáculo a partir das cartas e a preparar o recurso ao coleccionismo como metodologia para a sua criação artística.
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Tudo começou quando Raquel André encontrou na rua uma caixa de papelão repleta de cartas escritas à mão e que diziam respeito à troca de correspondência, ao longo de três décadas, entre uma mulher emigrada para a Bolívia e os seus pais. Eram 650 cartas que lhe preencheram o Verão de 2009, enquanto lia e se inteirava daquela história familiar e organizava as missivas empurradas para o lixo. No final desse período, criou um primeiro espectáculo a partir das cartas e a preparar o recurso ao coleccionismo como metodologia para a sua criação artística.
Passados dez anos sobre esse Verão, Raquel André estreia no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa Colecção de Artistas (até 29 de Setembro). É o terceiro movimento deste fôlego criativo, depois de Colecção de Amantes (2015) e Colecção de Coleccionadores (2017), definido pela convicção de Raquel de que “os nossos objectos podem contar a nossa história pessoal”. A pesquisa a partir do coleccionismo tornou-se então a sua “ferramenta de escrita para teatro”. “É uma possibilidade de encontrar pessoas e ter uma porta de entrada para as suas histórias”, diz ao PÚBLICO. E exemplifica com o seu guarda-roupa: “Este vestido comprei em Oslo, quando fui em digressão com a Colecção de Amantes; aquele foi a minha mãe que me deu, era dela nos anos 80; aqueles calções comprei quando fiz uma viagem romântica com uma pessoa que nunca mais vi.”
Aos poucos, aquilo que se foi tornando evidente para Raquel André é que, ao coleccionar histórias, está, na verdade, a tentar captar a efemeridade. E essa efemeridade manifesta-se, precisamente, no contacto com as pessoas. Pode por isso dizer-se que, afinal, aquilo que a artista procura, em cada um dos seus projectos, é guardar em si as pessoas com quem se encontra. “O mais efémero que existe é uma pessoa, porque estamos em constante mudança”, justifica. “Sendo impossível coleccionar pessoas, imaginei estas quatro tentativas: os amantes, que tento guardar através de uma intimidade; os coleccionadores, através dos seus objectos; os artistas, através das suas obras; e os espectadores, que darão origem a um novo trabalho em 2021.”
Colecção de Artistas representa “o auge dessa tentativa”. Porque se nos dois formatos anteriores havia algo de concreto que transportava para os espectáculos — com os amantes a prova de contacto existia através de uma fotografia que documentava a intimidade, aos coleccionadores era pedido que lhe oferecessem uma peça das suas colecções —, desta vez Raquel decidiu fazer do seu corpo o arquivo destes contactos. A cada um dos artistas pediu que partilhasse um fragmento da sua obra, que Raquel aprendeu para, agora, reproduzir em palco.
“Só que por mais que possa aprender a fazer o que eles me transmitiram, por mais que faça igual, nunca vou conseguir chegar a eles”, confessa. Daí que, ao vermos Raquel André desaparecer debaixo de um tapete de linóleo e esconder os seus movimentos, dançando sob a superfície que habitualmente é o chão dos bailarinos, sabemos que estamos a aceder à obra de Julia Schwarzbach de forma indirecta, imperfeita, numa replicação que nos deixa à porta da performance original. E assim acontece com a obra de artistas visuais, percussionistas, criadores circenses, rappers ou construtores de casas — porque a própria noção de artista é objecto de reflexão no espectáculo. Essa é, de facto, uma questão primordial para Raquel: “Para além da prática e do treino, o que mais acontece para sermos artistas?”, pergunta.
É nesse ponto que entram as histórias pessoais dos artistas que seleccionou — 18 numa primeira fase, dos quais 13 são abordados nesta primeira versão da Colecção de Artistas — em Bergen, Faro, Varsóvia, Salzburgo, Cincinnati, Nova Iorque, Loulé, Berlim, Orleães, Lisboa e Porto. A partir dos fragmentos das obras escolhidas por cada um, Raquel André vai escavando os seus percursos e percebendo como é que, por exemplo, a condição de imigrante da artista visual Lorena Molina acaba por se revelar na sua arte. Ou seja, não partilhando, naturalmente, a mesma biografia, Raquel mostra-nos o quanto a mimetização a que procede em palco não passa de uma tentativa de aproximação. É um acesso permitido a um universo de outro, mas consciente de que não passa de um fugaz vislumbre.
Apontando a uma diversidade de disciplinas artísticas, idades, contextos sociais, económicos e culturais, Raquel André não deixa de sublinhar no início de Colecção de Artistas uma sequência de criadoras cuja obra “fala sobre a sua condição de mulher e sempre com histórias muito fortes, ligadas à maternidade, à imigração ou ao corpo feminino”. E aí emerge também o que há de si num espectáculo criado a partir de fragmentos de outros. “Coleccionar estas mulheres artistas é afirmar o meu lugar como mulher artista”, diz em palco. Ao “coleccionar estas pessoas e ao escrever a suas histórias”, sabe Raquel, está também a escrever a sua história. Mesmo que, a um olhar distraído, possa parecer que os holofotes estão sempre a apontar para outro lado.