Origami eleitoral
Depois de 12 dobras, oito lambidelas, um pouco de cola em bastão e algumas gotas do suor que entretanto já escorria pelo meu rosto, meu voto estava pronto para seguir pelo correio
Acabo de votar. Sou um dos cerca de 1,5 milhões de portugueses que, por viverem fora do país, podem desde já participar das legislativas de 6 de Outubro, por correspondência.
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Acabo de votar. Sou um dos cerca de 1,5 milhões de portugueses que, por viverem fora do país, podem desde já participar das legislativas de 6 de Outubro, por correspondência.
A documentação chegou na semana passada e, com ela, o boletim de voto, um lençol inédito. Tem um formato A4-plus, com cerca de 35 centímetros de comprimento e 21 siglas partidárias. Nunca houve tanta gente a querer representar o povo na Assembleia da República. Em 2011, eram 11 os partidos e coligações. Daí em diante, foi sempre a subir: 16 em 2009, 17 em 2011, 20 em 2015. Se a tendência se mantém, o boletim em breve passará a ser em rolo.
As instruções que o acompanham, embora lógicas, sofrem de “complicatismo” – uma síndrome lexical própria da administração pública. A primeira frase, por exemplo, diz que o que temos em mãos é um “invólucro resposta/folha explicativa”. Será que é a resposta que explica ou a explicação que responde?
Segui o que mandavam as indicações. Primeiro, fazer uma cruz no sítio certo, inserir o boletim de voto num envelope verde, que também vinha com o pacote e dobrar uma pontinha lateral do mesmo. Depois agarrar no invólucro resposta/folha explicativa, esse mesmo que eu tinha em mãos, e dobrá-lo de modo a fazer dele um sobrescrito – procedimento metamórfico interessante, que transforma o conteúdo que vinha num envelope num envelope onde vai algum conteúdo. E finalmente nele depositar o envelope verde, adicionar uma cópia do cartão do cidadão, fechar a aba e pôr no correio.
Votar presencialmente é mais simples: dobrar o boletim em quatro, depositar na urna e sair feliz com o exercício desse direito que custou tanto a reconquistar, mas que muita gente desperdiça. No entanto, a norma agora é que os portugueses no estrangeiro votem por via postal, a não ser que informem que preferem a urna.
É uma medida bem-vinda. Nas últimas legislativas, dos cerca de 245 mil eleitores que havia no exterior, 88% não votaram. Entre outros motivos, muitos provavelmente se abstiveram por morarem longe dos locais de votação. Agora, com o recenseamento automático com base na morada no cartão do cidadão, os eleitores no estrangeiro passaram a ser quase 1,5 milhões. Todos devem ter recebido o boletim de voto e podem participar confortavelmente sentados em suas casas.
É claro que, com tantos passos, há ampla margem para confusão e, involuntariamente, por pouco não anulei meu voto. Primeiro, por excesso de saliva. Exagerei ao humedecer as pontas gomadas do invólucro/folha e quando dobrei tudo, uma lateral estava mais molhada do que colada. Por uma fresta generosa, via-se o envelope verde lá dentro, com certeza a correspondência ia-se abrir no trajecto. Reforcei a dose, apenas para piorar a situação. Sem outro remédio, pus meu voto ao sol, para secar, mas a seguir constatei, desesperado, que me havia esquecido de inserir a cópia do cartão do cidadão. Tinha de reabrir o envelope – o de fora, não o de dentro – com o risco de rasgar alguma coisa e invalidar minha participação eleitoral.
Com paciência e cuidado cirúrgico, a operação afinal foi bem sucedida. Incluí o documento que faltava, redobrei o invólucro, humedeci as pontas que ainda tinham goma, colei as que não tinham e fechei tudo. E assim, depois de 12 dobras, oito lambidelas, um pouco de cola em bastão e algumas gotas do suor que entretanto já escorria pelo meu rosto, meu voto estava pronto para seguir pelo correio.
Acabo de voltar de lá, com a consciência cívica tranquila. Estou democraticamente satisfeito, mas eleitoralmente exausto. E, depois de tanto dar à língua, com uma sede dos diabos.