DGS, EMEL e enfermeiros. Como as telenovelas se tornaram arma de comunicação
A Ordem dos Enfermeiros pagou para patrocinar uma personagem na novela Nazaré para “pôr a sociedade a pressionar o poder político”. A DGS também pagou para passar uma mensagem na mesma novela. A técnica chama-se soft sponsoring.
A Ordem dos Enfermeiros pagou 36 mil euros (mais IVA) para patrocinar a personagem de uma enfermeira na telenovela da SIC Nazaré, enquanto parte da estratégia de promoção da profissão. A mesma novela permitiu também à SIC encaixar 12 mil euros da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que viu nela uma forma de promover a literacia em saúde.
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A Ordem dos Enfermeiros pagou 36 mil euros (mais IVA) para patrocinar a personagem de uma enfermeira na telenovela da SIC Nazaré, enquanto parte da estratégia de promoção da profissão. A mesma novela permitiu também à SIC encaixar 12 mil euros da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que viu nela uma forma de promover a literacia em saúde.
Toda a gente sabe que James Bond conduz um Aston Martin — este é um dos exemplos mais conhecidos de soft sponsoring, a alternativa “mais criativa” à publicidade tradicional, a par do product placement. Mas já há entidades públicas portuguesas a usá-la, como a DGS, a EMEL e autarquias.
Dias depois de ter sido celebrado o contrato com a Ordem dos Enfermeiros, a DGS também assinou um contrato com a SIC, no valor de 12.194 euros, indica o Base, portal dos contratos públicos. Intenção: divulgar “conteúdos de promoção da literacia em saúde na novela Flor de Sal”— que entretanto mudou de nome para Nazaré.
A DGS apostou nesta estratégia “como uma das formas de disseminação, enquadradas no plano de comunicação, para a divulgação das recomendações, com especial enfoque nas pessoas idosas, para autocuidado no Inverno e para a promoção da campanha de vacinação contra a gripe”, disse, por escrito, fonte oficial ao PÚBLICO.
No início de 2019, soube-se que a EMEL (Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa) iria patrocinar a personagem de um fiscal na novela Alma e Coração, também da SIC. A EMEL já tinha feito saber que iria apostar na “activação de branded content, através de envolvimento com a ficção nacional”, explicava a entidade em Novembro de 2018, por altura da aprovação do Plano de Actividades para 2019. O objectivo da EMEL, de acordo com um comunicado enviado em Janeiro, era “criar maior proximidade com as pessoas, dando-lhes a conhecer o trabalho dos fiscais”.
Prática “comum"
Contactada pelo PÚBLICO, a autora da novela Nazaré, Sandra Santos, disse que o soft sponsoring é “comum” e que “há marcas que pagam para ter presenças nas novelas”. “Não é uma coisa fora do normal, não é uma coisa forçada.”
A SIC prefere a expressão “brand entertainment" para definir o acordo com a Ordem dos Enfermeiros. “Uma prática usual na indústria do audiovisual e regulada através da legislação nacional e europeia”, esclarece a mesma fonte por e-mail ao PÚBLICO.
No que respeita à enfermeira Cláudia de Nazaré, Sandra Santos afirma que a “personagem já existia, não foi colocada na novela de propósito”. “A Ordem queria comunicar algumas coisas de interesse público, como a prevenção da gripe, como o faz na televisão e noutras campanhas institucionais”, afirma. A sinopse da novela foi submetida em Setembro do ano passado, e já nessa altura “fazia sentido” ter uma enfermeira na novela.
Ao PÚBLICO, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros disse que a enfermeira Cláudia faz parte da “estratégia de divulgação e dignificação da profissão”. Ana Rita Cavaco defende que ter uma personagem numa telenovela é uma forma de “pôr a sociedade a pressionar o poder político para as questões que têm envolvido a profissão”, que apostou em greves cirúrgicas financiadas por crowdfunding, o que motivou críticas e uma inspecção da ASAE, e também de “retratar a profissão” junto do grande público.
Mas não é só a SIC que celebra contratos de soft sponsoring: a prática é mais ou menos comum noutros canais. Por exemplo, em 2010 e 2011, a Plural (da Media Capital, dona da TVI) também celebrou contratos com os municípios de Coruche (31.428 euros), de Viseu (45.000 euros) e de Albufeira (125.000 euros) para “promoção” dos municípios “em novela da TVI”. Os detalhes dos contratos não constam do portal Base. No caso de Albufeira, sabe-se que foi para a gravação da novela Mar de Paixão, que contou com algumas cenas gravadas na Herdade dos Salgados.
O que é o soft sponsoring?
“É uma forma das marcas se manterem em TV, onde grande parte dos seus alvos permanece, e de continuarem associadas a programas de grande audiência”, lê-se num estudo da Marktest sobre o assunto, publicado em 2015. “Esta forma de exposição da marca permite contornar o tradicional zapping durante os intervalos, ao mesmo tempo que, de uma forma mais ou menos criativa, associa marcas a personagens e situações quotidianas retratadas nos programas de ficção.”
O estudo permite perceber quais eram os programas portugueses que mais usavam a estratégia de soft sponsoring. O programa com maior exposição de marcas era, em 2014, o Preço Certo da RTP 1 – muito por causa das montras de prémios.
Desde 2015, a estratégia sofisticou-se, mas as bases já lá estavam. “Algumas marcas optam pela presença diferente da mera exposição na imagem e, com a colaboração das produtoras, é criado um contexto no enredo das novelas que gera exposição numa envolvente do cenário e da própria história”, lê-se no mesmo relatório. Foi o que aconteceu o caso da personagem da enfermeira na novela da SIC.
Notícia actualizada às 21h54 com declarações da DGS e SIC