O cinema queer é quando um ser humano (e o Queer Lisboa) quer

A 23.ª edição do festival dedicado ao cinema LGBTI+ arranca esta sexta-feira e segue até dia 28. Um festival de resistência e de questionamento, com destaque especial para as produções brasileiras

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Mesmo antes do choque da retirada do apoio da Ancine à exibição de produções brasileiras, a programação do Queer Lisboa 23 – Festival Internacional de Cinema Queer, que decorre no cinema São Jorge e na Cinemateca a partir desta sexta-feira e até dia 28, já reflectia o momento sociopolítico das comunidades LGBTI+ (lésbica, gay, bisexual, transgénero e intersexo). Bastava exibir filmes sobre os 50 anos dos Motins de Stonewall, ponto zero do activismo gay americano; bastava celebrar os 40 anos do Panorama, a secção paralela do Festival de Berlim que sempre defendeu as sexualidades alternativas (e cujo director, Wieland Speck, que virá a Lisboa, fundou igualmente o célebre prémio Teddy em 1987); bastava marcar os 20 anos da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa.

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Mesmo antes do choque da retirada do apoio da Ancine à exibição de produções brasileiras, a programação do Queer Lisboa 23 – Festival Internacional de Cinema Queer, que decorre no cinema São Jorge e na Cinemateca a partir desta sexta-feira e até dia 28, já reflectia o momento sociopolítico das comunidades LGBTI+ (lésbica, gay, bisexual, transgénero e intersexo). Bastava exibir filmes sobre os 50 anos dos Motins de Stonewall, ponto zero do activismo gay americano; bastava celebrar os 40 anos do Panorama, a secção paralela do Festival de Berlim que sempre defendeu as sexualidades alternativas (e cujo director, Wieland Speck, que virá a Lisboa, fundou igualmente o célebre prémio Teddy em 1987); bastava marcar os 20 anos da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa.

Mas, acima de tudo, há uma atitude, uma tomada de posição. Patente desde logo na escolha como filme de abertura (São Jorge, esta sexta-feira às 21h00) de Indianara, o documentário franco-brasileiro de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa sobre a activista transgénero brasileira Indianara Siqueira: no ponto exacto entre o testemunho de existências humanas em toda a sua diversidade e a resistência ao cerco de um populismo conservador que se refugia no medo e na intolerância da diferença. E uma atenção especial ao cinema brasileiro, verdadeiro laboratório de formas possíveis do cinema queer e um dos viveiros mais criativos da produção global contemporânea — com a presença, por exemplo, de Sócrates de Alexandre Moratto na competição de longas, e na competição paralela Queer Art, Ilha de Ary Rosa e Glenda Nicácio e Sol Alegria de Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira.

Essa ideia de celebração do cinema brasileiro provou ser tristemente presciente quando, já esta semana, se soube da rescisão do apoio da instituição federal de cinema Ancine à exibição em Portugal de dois dos filmes brasileiros seleccionados — a curta de Diego Paulino Negrum3 e Greta, primeira longa de Armando Praça, que já tinha estado em Berlim 2019, com Marco Nanini (veterano que conhecemos das telenovelas da Globo) no papel de um enfermeiro idoso que finalmente assume a sua identidade. É uma decisão que torna claro o desinvestimento do actual Governo brasileiro na cultura e na diversidade, e o desmantelamento de políticas que ajudaram o Brasil a tornar-se numa cinematografia de referência contemporânea.

Greta (São Jorge, domingo 22 às 22h) faz ao mesmo tempo parte da aposta na exibição do estado actual da “nação LGBTI+” — activista, motivada, determinada — e também da melhor secção competitiva de longas-metragens do festival em vários anos. Nela veremos ainda dois filmes argentinos que já vêm com significativas carreiras internacionais — As Filhas do Fogo de Albertina Carri (já garantido para distribuição portuguesa; São Jorge, sexta 27 às 19h30) e Breve Historia del Planeta Verde de Santiago Loza (vencedor do Teddy 2019 em Berlim; São Jorge, terça 24 às 19h30 e sexta 27 às 17h15) — e o espanhol Carmen & Lola, de Arantxa Echevarria, ambientado na comunidade cigana e estreado na Quinzena dos Realizadores de Cannes (São Jorge, sábado 21 às 19h30 e segunda 23 às 17h15).

Haverá espaço para L’étincelle: une histoire des luttes LGBT+, documentário do francês Benoît Mascoco de título auto-explicativo (São Jorge, domingo 22 às 17h15); mas também para Sem Receio de Criar o Caos, exposição patente durante o festival na galeria FOCO, inspirada por e em homenagem a Harmony Korine com obras de Andy James, Karine Rougier, Dylan Silva, Filippo Fiumani e Rui Palma, completada pela passagem do seu filme de 2007 Mister Lonely (Cinemateca, sábado 28 às 19h00). E haverá mais uma sessão comemorativa dos 20 anos da Agência da Curta-Metragem, escolhida desta vez pela cineasta Cláudia Varejão, onde se exibem títulos próximos do cinema experimental assinados por Filipa César e Marco Martins, Inês Sapeta Dias, Joana Pimenta, Renata Sancho e Salomé Lamas (São Jorge, sábado 21 às 17h55)

O que define o cinema queer

É uma programação que, nas suas múltiplas vertentes, sinaliza o estado actual da nação LGBTQ — activista e determinada a manter os ganhos adquiridos ao longo das últimas décadas — mas que também reflecte a dificuldade de definir “o que é um filme LGBTQ”. Que é, aliás, a grande questão de todos os festivais de cinema queer do mundo — o que define o cinema queer: temática, estilo, identidade, iconografia? — e aquela que em grande parte ainda está por resolver.

O que é que torna, por exemplo, dois filmes exibidos na paralela Queer Focus queer? Em ambos se fala de embustes literários que fizeram sensação: JT Le Roy, de Justin Kelly, com Laura Dern e Kristen Stewart, recria o caso da “escritora” transgénero que, ao fim de seis anos, acabou por ser revelada como um fraude (São Jorge, terça 24 às 22h00); Can You Ever Forgive Me?, de Marielle Heller, sobre a vida e as falsificações da biógrafa Lee Israel, valeu nomeações para os Óscares a Melissa McCarthy e Richard E. Grant (São Jorge, sábado 28 às 17h15). São dois filmes adquiridos para distribuição mas que continuam por estrear (Can You Ever Forgive Me? saiu directamente para exibição nos canais de cabo), reflectindo igualmente a dificuldade de integrar obras que escapam a formatações num circuito de distribuição que parece apenas querer mais do mesmo.

Garantidamente, não é mais do mesmo que o Queer Lisboa, este ano na sua 23.ª edição, propõe. A surpresa está ao virar da esquina até dia 28. A programação completa pode ser consultada em http://queerlisboa.pt .