Com Bethânia, até os breus ganham luz
Claros Breus é um manifesto musical e poético onde a evocação das noites boémias do Rio se junta à celebração da negritude e à evidência das negruras do mundo. Maria Bethânia deu luz aos breus em Portugal, por três vezes, com o Brasil no pensamento.
O público português mais fiel a Maria Bethânia pode ter sentido alguma estranheza, mas o roteiro desenhado pela cantora para Claros Breus terá sido maduramente pensado para causar sentimentos contraditórios: reconhecimento, desconforto, nostalgia, orgulho, dor, alegria, esperança, determinação. Se o palco, como ela diz, é a única tribuna que tem e ali quis deixar o seu recado, o seu discurso, ele soou brilhante e lógico a quem o entendeu.
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O público português mais fiel a Maria Bethânia pode ter sentido alguma estranheza, mas o roteiro desenhado pela cantora para Claros Breus terá sido maduramente pensado para causar sentimentos contraditórios: reconhecimento, desconforto, nostalgia, orgulho, dor, alegria, esperança, determinação. Se o palco, como ela diz, é a única tribuna que tem e ali quis deixar o seu recado, o seu discurso, ele soou brilhante e lógico a quem o entendeu.
Primeiro no Coliseu do Porto (dia 14) e depois duas noites consecutivas no de Lisboa, a 18 e 19 (este texto reflecte apenas o primeiro concerto lisboeta), Claros Breus tem um arranque sombrio, num cenário onde predominam o vermelho e o negro e onde centenas de pequenas velas acesas ladeiam o palco, demarcando o terreno da função. Que cabe, primeiro, à banda, uma formação ajustada à sonoridade arquitectada pelo maestro baiano Letieres Leite, criador da Orkestra Rumpilezz e convidado por Bethânia para construir, junto com ela, este espectáculo: Marcelo Galter (piano), Pretinho da Serrinha (percussão), Luizinho do Jêje (percussão), Jorge Helder (contrabaixo), Carlinhos Sete Cordas (violão).
O instrumental de arranque assinalou logo o tom: este será talvez o mais “afro” (pelo som e também pelas referências) dos espectáculos de Bethânia e, nisso (só nisso), lembra um outro que o seu irmão Caetano Veloso criou em 2001 a partir do disco Noites do Norte, onde recordava a negritude, a escravidão e a luta abolicionista de Joaquim Nabuco em Minha Formação, ali sublinhando (escrevi à data) “o “sentido de miscigenação herdado dessa escravatura que marcou, e marca ainda, a realidade social e política do Brasil.”
Dezoito anos depois, tendo mudado o mundo e também o Brasil, o discurso de Bethânia percorre na música e na poesia caminhos semelhantes. Quando, finalmente, ela surge em palco (de vermelho brilhante) e a sua voz soa, ouvimos Pronta pra cantar, de Caetano. Cantar o quê? Primeiro, Drama (ainda Caetano), lembrando que “ao fim de cada acto/ limpo num pano de prato/ as mãos sujas do sangue das canções”. Depois, a inédita A flor encarnada, de Adriana Calcanhotto (“A estrada desapareceu/ Nem sei o que sobreviveu/ Agora sou eu e meus breus/ Só eu”) e, num remate perfeito, Sangrando, de Gonzaguinha, De todas as maneiras, Chico Buarque (“De todas as maneiras que há de amar/ Nós já nos amámos/ Com todas as palavras feitas pra sangrar/ Já nos cortámos"), Pernas, de Sérgio Ricardo (“Luz vermelha no sinal do sol pra mim/ Perigoso atravessar pra lá do sol”) e um excerto de Poema Sujo, de Ferreira Gullar (“eu não sabia tu não sabias fazer girar a vida”).
Das ilusões e amores dilacerados, irrompe então a nostalgia: as noites boémias do Rio, quando os músicos actuavam em clubes e iam ouvir-se uns aos outros, noites mágicas. E nada melhor do que Sábado em Copacabana, de Dorival Caymmi e Carlos Guinle, para começar. Até ao rodar dos copos: Gota de sangue, de Angela Ro-Ro, e Lama, de Paulo Marques e Aylce Chaves, a que Elza Soares também já emprestou o seu troar embebido em blues: “Se eu quiser fumar, eu fumo/ Se eu quiser beber, eu bebo/ Não me interessa mais ninguém/ Se o meu passado foi lama/ Hoje quem me difama/ Viveu na lama também.”
Depois, a lembrança de São Paulo, que abrigou na sua esfera, disse Bethânia, “nordestinos como eu e o meu irmão Caetano Veloso”. E cantou Sampa, suscitando fortes aplausos, seguindo-se A beira e o mar (Roberto Mendes e Jorge Portugal), Grito de alerta (de novo Gonzaguinha), Olhos nos olhos (Chico Buarque) e Quando digo que deixei de te amar, canção que fez sucesso pela dupla sertaneja Chitãozinho & Chororó. Depois, intervalo. Mas sem que ninguém saísse da sala, porque o quinteto ficou a explorar, na sua sonoridade afro, entre o jazzístico e o electrónico, as entranhas de Carcará, tema mítico para Bethânia.
Esta, quando regressou, já não veio de vermelho mas de branco, também brilhante, quando pelo cenário já havia passado outra cor, azul, aposta ao vermelho e ao negro dominantes. E as canções recomeçaram pela efusiva Rosa dos Ventos (Chico Buarque), seguida de um levantar do pano vermelho que compunha o cenário e de um batuque que introduziu as palavras de Mia Couto na leitura, por Bethânia, de uma passagem do seu livro A Espada e a Azagaia (2016), como já a ouvíramos fazer no filme Fevereiros, de Marcio Debellian, por cá estreado este ano: “A música é a língua materna de Deus. Foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam. Que em África os deuses dançam. E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores. Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor. Ou, mais grave ainda, percutiríamos com os pés sobre a superfície da Terra e, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro.”
Depois, Yayá Massemba (de Roberto Mendes e Capinam), que começa na rota do tráfico de escravos (“Que noite mais funda calunga/ No porão de um navio negreiro”) e termina num despertar das consciências (“Vou aprender a ler/ Pra ensinar os meu camaradas”). E Sinhá, a belíssima canção (de Chico Buarque e João Bosco) por que Bethânia se apaixonou ao ouvi-la e a que quis dar toda a ênfase. Uma canção que fala do drama de um escravo que vai ser supliciado sob a acusação de ter visto nua a sua “dona”, o “conto de um cantor com voz de pelourinho”: “Por que talhar meu corpo/ Eu não olhei Sinhá/ Para que que vosmincê/ Meus olhos vai furar/ Eu choro em iorubá/ Mas oro por Jesus/ Para que que vosmincê/ Me tira a luz.” Ao drama de Sinhá, o contra-ataque da Mangueira, no samba-enredo Histórias Para Ninar Gente Grande: “Tem sangue retinto pisado/ Atrás do herói emoldurado/ Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato.”
Daí à imponência do carcará, foi um passo: “Águia nordestina/ a guiar meninos e meninas como eu/ comove-me vê-la/ asas como velas/ no céu.” Palavras de Chico César em Águia nordestina, uma das várias canções inéditas deste projecto. Sonho impossível, que já tantas vezes ressoou na voz de Maria Bethânia, voltou a ouvir-se, num contexto adequado, antes de uma canção que assinala um renascer de esperança: Música, música, de Roque Ferreira, cantor e compositor da Bahia: “Nascem novamente no meu peito/ As ilusões/ Feito flores novas no jardim/ Corre novamente um rio/ Dentro de mim.” Por fim, a encerrar, Se todos fossem iguais a você, de Vinicius e Jobim. “Linda canção de amor”, para sonhar em paz.
Mas mais tarde, que Maria Bethânia ainda voltou ao palco para cantar Negue (de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos); Purificar o Subaé, um manifesto ecológico que Caetano escreveu e cantou com ela, junto com Gil e Nicinha, no álbum Alteza (1981); e, a terminar em definitivo o espectáculo, Encanteria, de Paulo César Pinheiro, onde ela canta, declarando-se luz: “Moço apague essa candeia/ Deixa tudo aqui no breu/ Quero nada que clareia/ Quem clareia aqui sou eu.” Os aplausos ainda tentaram forçar um regresso, mas a luz da sala acendeu-se, enquanto a luz de Bethânia se recolhia a pensar no dia seguinte.