Fernão de Magalhães, o rival do Sol
Quinhentos anos após a sua partida, a 20 de Setembro de 1519, muitas são as formas e os locais que celebrarão quem ousou rivalizar com o Sol no seu percurso, de este para oeste, em redor do planeta.
Como responsável de um Centro de Ciência Viva, identifico em Fernão de Magalhães muito daquilo com que trabalhamos e do que procuramos atingir: pessoas que se desafiam e desafiam os outros, conhecimento para entender melhor o mundo ou até para melhorar a vida de outros, material ou imaterialmente.
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Como responsável de um Centro de Ciência Viva, identifico em Fernão de Magalhães muito daquilo com que trabalhamos e do que procuramos atingir: pessoas que se desafiam e desafiam os outros, conhecimento para entender melhor o mundo ou até para melhorar a vida de outros, material ou imaterialmente.
Como historiador natural e professor, considero que a primeira viagem de circum-navegação de Magalhães, impelido pelo desejo de descobrir a passagem sul para as ilhas Molucas, ilhas de especiarias, é útil para os públicos com que trabalhamos e o legado da sua viagem tem muito em comum com a missão da instituição onde trabalho. Destacarei alguns.
Até à viagem do português Fernão de Magalhães, onde se atreveu a colocar o oceano Pacífico literalmente no mapa, a circularidade não emanava das viagens de descoberta ou das rotas comerciais. Antes eram, e os exemplos portugueses seus contemporâneos atestam-no, viagens de ida e de regresso, seguindo aproximadamente o mesmo curso. Ir e vir, sem dar a volta.
A mudança conceptual trazida pela circum-navegação de Magalhães, a circularidade, é tanto mais importante quanto hoje sabemos que os seres humanos são fortemente atraídos pela forma circular. As formas arredondadas são para os seres humanos, de há milénios aos dias de hoje, mais atractivas do que as formas angulosas. Formas arredondadas inspiram segurança e conforto enquanto as angulosas provocam desconfiança ou são sinal de perigo. Em geral, obviamente. Esta dimensão aparentemente prosaica da primeira viagem à volta da Terra é marcante. O novo mundo circular, oferecido por Magalhães, é mais agradável, sem ângulos, sem vértices que atinjam o sonho, a ambição e o desejo de conhecer mais e melhor. Esta é uma das grandes virtudes da viagem de Magalhães. E é-o também da ciência e da cultura científicas que defendemos.
“A Igreja diz que a Terra é plana, mas eu sei que ela é redonda, porque vi sua sombra na Lua. Tenho mais fé numa sombra do que na Igreja.” A frase apócrifa de Magalhães atesta o que no século XVI já se sabia, pelo menos para os estudiosos – o nosso planeta é redondo, embora o seu tamanho fosse ainda desconhecido. A viagem de Magalhães, a primeira que sequencialmente liga o Atlântico e o Pacífico, é uma verdadeira expedição científica. Para além de viajarem no que à época eram cinco dos melhores exemplos da tecnologia náutica da altura, transportava a bordo instrumentos, especialistas, como cartógrafos e astrónomos, e, sobretudo, as observações eram metodicamente registadas. Enfim, análogo ao que é a actual investigação científica. São estas observações, registos e cálculos detalhados da viagem do circum-navegador que darão um verdadeiro tamanho à Terra em definitivo.
Estes legados de Magalhães permitem a adultos e a jovens notar que, por muito que viajemos, poderemos chegar a todos os lugares do planeta, bastando para tal ter tempo, engenho ou ouro suficientes. Uma ilha que tem dentro ilhas, isto é o nosso planeta, onde os limites daquele desconhecido ficam definitivamente para trás e abrirão porta a outros desconhecidos. Fechar velhos e abrir novos desconhecidos, foi isso que a ciência náutica, a cartografia e a astronomia da expedição de Fernão de Magalhães permitiram fazer.
E há melhor missão para a ciência e tecnologia do que fechar velhos desconhecidos e, dia após dia, abrir novas incógnitas?
Um Centro de Ciência Viva deverá sublinhar o carácter multicultural do mundo em que vivemos, onde cada um de nós pode manter a sua individualidade e conhecer a diversidade colectiva que nos rodeia. Este foi mais um contributo da viagem de Magalhães, a globalização. O mundo não mais teria apenas um centro. Da mesma forma, pessoas e culturas foram tocadas e descobertas, nem sempre da melhor forma, é certo, mas essas novas realidades físicas e humanas foram trazidas para o ocidente fazendo parte dele até aos dias de hoje.
Na instalação cenográfica produzida pelo centro que dirijo, e de que faz parte o modelo de uma caravela de dez metros para construção em grupo, o painel de abertura é de Giovanni Stradano. O artista, do século XVI, ornamenta a viagem de Magalhães com vários elementos mitológicos e alegóricos, dos gigantes patagões a Apolo, sem esquecer os fogos da Terra do Fogo. Para lá da beleza e simbologias representadas, uma citação decora o quadro de Stradano. Destaco em particular o trecho “rivalizando com o curso do Sol sobre Terra”. Esta elegante homenagem faz jus ao que a viagem de Fernão de Magalhães representa – o desafiar do irrealizável, do estabelecido, tal como uma corrida contra o Sol, que, de forma ininterrupta e permanente, caminha sempre para oeste.
Fernão de Magalhães, e alterando a ordem do que versava Álvaro de Campos sobre mapas, deu-nos o que muitos desejaram, um “caminho concreto para a imaginação abstracta”.
Director do Centro Ciência Viva de Lagos, paleontólogo