O cotão do umbigo

Nunca seria capaz de fazer mal a ninguém. Nem ralhar consigo. Limito-me a escrever e a afixar papéis com pedidos, nem avisos são, e nunca os assino, claro. Sou demasiado cobarde, podem dizê-lo à vontade.

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Mag Rodrigues

Afixei há dias, pela quarta vez, um papel na porta do prédio onde vivo, com o seguinte pedido: “FECHAR COM CUIDADO. NÃO BATER. OBRIGADO.” Moro no rés-do-chão e o quarto onde tento dormir fica mesmo colado à entrada do prédio. É uma porta antiga com uma moldura maciça em ferro. Tem sido difícil dormir uma noite de seguida porque, quando não me bate à porta do sono a Sónia — nome jocoso de uma amante insaciável, com que baptizei a insónia que me lixa o descanso —, são os sacanas dos condóminos a bater com a porta do prédio a altas horas.

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Afixei há dias, pela quarta vez, um papel na porta do prédio onde vivo, com o seguinte pedido: “FECHAR COM CUIDADO. NÃO BATER. OBRIGADO.” Moro no rés-do-chão e o quarto onde tento dormir fica mesmo colado à entrada do prédio. É uma porta antiga com uma moldura maciça em ferro. Tem sido difícil dormir uma noite de seguida porque, quando não me bate à porta do sono a Sónia — nome jocoso de uma amante insaciável, com que baptizei a insónia que me lixa o descanso —, são os sacanas dos condóminos a bater com a porta do prédio a altas horas.

Não quero parecer picuinhas, nunca o fui com vizinhos, só sou mesquinho com pessoas realmente próximas, mas o estrondo da porta do prédio é de tal forma violento que, a meio de cumprir a encomenda dos sonhos, sinto um claro deslocamento do cérebro. Já me lembrei várias vezes do livro Crimes Exemplares, de Max Aub. Os protagonistas desses pequenos contos insólitos, acometidos por psicopatias evidentes, matam vários indivíduos a troco de ninharias. Por exemplo: “Matei-o porque me doía a cabeça. E ele, zás, falava sem parar, sem descanso, sobre coisas que nada me interessavam. Matei-o porque me doía o estômago. Matei-o porque lhe doía o estômago.”

Ao contrário dos protagonistas destas ficções, nunca seria capaz de fazer mal a ninguém. Nem ralhar consigo. Limito-me a escrever e a afixar papéis com pedidos, nem avisos são, e nunca os assino, claro. Sou demasiado cobarde, podem dizê-lo à vontade.

Por vezes, durante a noite, também me lembro do cotão no umbigo. Na pesquisa do Google não encontrei ligação entre cobardia e cotão no umbigo, mas não deixo de pensar que estão relacionados. Uma pessoa que continua a bater com a porta com toda a força, depois de ler um humilde pedido, é alguém que trata do seu umbigo de forma acima da média, gostando eventualmente de exibi-lo em circunstâncias sociais.

Já eu, por exemplo, não consigo manter o meu umbigo em condições desejáveis. E não é por falta de asseio, acreditem, eu lavo-o e limpo-o muitíssimo bem; é uma espécie de maleita congénita. Sou um homem com cotão no umbigo.