Vozes que tentam, e uma voz no seu esplendor
Os dois eventos do Festival de Sintra a que pudemos assistir são um bom exemplo da nova ambição deste Festival e dos cruzamentos que ela pode propiciar.
O Festival de Música de Sintra diversificou ultimamente a sua oferta; isto é de saudar, já que tal corresponde à riqueza histórica da região e à diversidade dos espaços, palacianos ou religiosos, que a testemunham. Os dois eventos a que pudemos assistir são um bom exemplo da nova ambição do Festival e dos cruzamentos que ela pode propiciar. Em primeiro lugar, de João Domingos Bomtempo (1775-1842), cuja obra para piano tem suscitado crescente interesse, esperaríamos um recital alusivo, bem dentro da tradicional linha sintrense de valorização do piano romântico. Mas não; optou-se por uma bem mais exigente reposição de quatro dos seus Responsórios de Matinas para as Exéquias da rainha D. Maria I (Mattutino dei Morti), compostos em 1822; prevê-se que no próximo ano os restantes responsórios possam ser montados, naquela que será a sua segunda audição moderna.
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O Festival de Música de Sintra diversificou ultimamente a sua oferta; isto é de saudar, já que tal corresponde à riqueza histórica da região e à diversidade dos espaços, palacianos ou religiosos, que a testemunham. Os dois eventos a que pudemos assistir são um bom exemplo da nova ambição do Festival e dos cruzamentos que ela pode propiciar. Em primeiro lugar, de João Domingos Bomtempo (1775-1842), cuja obra para piano tem suscitado crescente interesse, esperaríamos um recital alusivo, bem dentro da tradicional linha sintrense de valorização do piano romântico. Mas não; optou-se por uma bem mais exigente reposição de quatro dos seus Responsórios de Matinas para as Exéquias da rainha D. Maria I (Mattutino dei Morti), compostos em 1822; prevê-se que no próximo ano os restantes responsórios possam ser montados, naquela que será a sua segunda audição moderna.
A execução da primeira parte da obra (sem as antífonas iniciais) deu-se num espaço de concerto, de acústica relativamente seca, e não num espaço religioso; isso é coerente com o propósito de suscitar uma apreciação primariamente artística da partitura, substituindo a função litúrgica e simbólica pela moderna valorização estética. A necessidade de convencer o ouvinte do valor da obra requer, em contrapartida, um cuidado especial com a interpretação musical. Infelizmente, por razões que não me cabe apurar, esta ficou muito aquém do desejável. As partes corais, aqui fundamentais, não foram trabalhadas com o necessário gosto e afinco, de maneira a modelar e a dar direcção às linhas vocais e a enriquecer a paleta dinâmica, praticamente reduzida a fortíssimo e piano.
Entre os solistas, Catia Morezzo encantou pelo timbre cheio e pela intencionalidade mas não soube lidar com as passagens rápidas; Luís Rodrigues adoptou uma veia histriónica que, no contexto de um trio de barítonos, se revelou completamente desadequada, desequilibrando o conjunto. Estas insuficiências fizeram com que o primeiro responsório soasse algo chão, mas, apesar de tudo, não impediram que se apreciasse a grande qualidade inventiva dos responsórios II-IV, que justificam plenamente a aposta do Festival na divulgação desta obra de Bomtempo.
Em contraste, o recital da soprano Ana Quintans e do pianista Filipe Raposo foi um êxito completo, com um único senão: o caos no tratamento do programa. Se o músico é livre de modificar o alinhamento final de um recital, o programa impresso deve estar isento de contradições e o público tem direito a ser avisado das alterações de última hora. Em suma, o programa impresso continha duas versões do alinhamento musical: a mais antiga, consagrada na reprodução dos textos originais em inglês, francês e italiano (sem qualquer tradução); e a intermédia, com uma ordenação muito diferente, o que tornava difícil seguir a sequência textual. A versão final do programa, aquela que foi realmente seguida pelos artistas, desviou-se frequentemente da versão primitiva na ordem e na escolha dos excertos cantados, e também da intermédia, na sua parte final, de onde desapareceram duas peças de Offenbach e de Joni Mitchell, substituídas por Je suis comme je suis, de Jacques Prévert e Joseph Kosma (canção que teve como primeira intérprete Juliette Gréco).
Como o leitor já deve ter depreendido, este recital foi tudo menos vulgar: a organização deu carta branca a Ana Quintans, reputada intérprete de música antiga, para apresentar no Palácio de Queluz um recital com acompanhamento de piano, com repertório inspirado na figura feminina, que poderia vir até à actualidade. E assim foi: dez peças do século XVII (Merula, Strozzi, Cavalli, Purcell, Lambert, Charpentier), uma ária de opereta (Offenbach) e canções do século XX ligadas, com a excepção de Charm (Britten), ao cabaret ou ao musical (Weill, Berlin, Bernstein, Misraki, Barbara, Kosma). Entre elas, obras-primas à espera da redescoberta. Em todas, ao longo de uma hora e vinte, sem intervalo, e apesar do calor que se fazia sentir, Ana Quintans pôde deliciar a audiência com uma rara mistura de poder expressivo, fluência e sensibilidade, respeitando cada língua e cada estilo nos limites da coerência da postura vocal (a abordagem semi-falada do cabaret ficou assim posta de parte). Mas o resultado, com muitas contaminações, não teria sido o mesmo sem Filipe Raposo, pianista capaz de tornar alegremente jazzístico Oft she visits de Purcell e de encher de contraponto a textura vazia da canzonetta Hor ch'è tempo di dormire de Merula, fazendo jus ao mesmo tempo à exigência instrumental de Benjamin Britten e à graça compassada de Irving Berlin. O resultado, maravilhoso, desta conjunção de talentos, clama não só por um bom programa impresso, como por múltipla reposição, gravação e desenvolvimento...