O bilhete é o seu rosto. Um avanço ou um risco?
Na semana passada um grupo de artistas manifestou-se contra a intenção da Ticketmaster em substituir os bilhetes tradicionais pelo reconhecimento automático do rosto. Mas valerá a pena protestar?
A empresa americana Ticketmaster — que em 2010 se fundiu com a Live Nation (a maior produtora mundial de espectáculos) — pretende acabar com os ingressos tradicionais, físicos e digitais, para passar a usar a biometria, mais concretamente a tecnologia de reconhecimento facial, como “bilhete de entrada” nos espectáculos.
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A empresa americana Ticketmaster — que em 2010 se fundiu com a Live Nation (a maior produtora mundial de espectáculos) — pretende acabar com os ingressos tradicionais, físicos e digitais, para passar a usar a biometria, mais concretamente a tecnologia de reconhecimento facial, como “bilhete de entrada” nos espectáculos.
A ideia foi apresentada em Maio de 2018 e pretende, sobretudo, contornar a falsificação e a venda não autorizada de bilhetes, que custam anualmente às produtoras de espectáculos milhares de milhões de dólares só nos Estados Unidos.
A Ticketmaster estabeleceu uma parceria de investimento com uma empresa chamada Blink, que desenvolveu uma tecnologia capaz de reconhecer um rosto em apenas meio segundo — e sem que seja preciso olhar directamente para a câmara. É andar e entrar, sem paragens, agilizando drasticamente o acesso aos recintos.
Contudo, a medida não está a ser bem recebida por todos, nomeadamente por aqueles que deviam ser parte interessada. Na semana passada vários artistas e bandas associaram-se ao movimento Fight for the Future para protestar contra a iniciativa da Ticketmaster, alegando que o sistema de entrada através de reconhecimento facial põe em causa o direito à privacidade dos fãs.
O guitarrista Tom Morello (Rage Against the Machine, Audioslave) foi uma das vozes mais reconhecidas de um grupo que inclui também, entre outros, Amanda Palmer (The Dresden Dolls) e os Thievery Corporation.
Através do Twitter, Morello justificou a adesão à campanha por não querer o “big brother” nos seus espectáculos a identificar os fãs para eventual “prisão ou deportação”.
A Fight for the Future elabora os receios, defendendo que “os fãs de música devem sentir-se seguros e respeitados” nos espectáculos e nos festivais, considerando que não devem ser sujeitos “a vigilância biométrica invasiva”.
“O reconhecimento facial é uma forma de vigilância excepcionalmente perigosa”, pois permite a monitorização constante de uma multidão e pode ser facilmente usada para “identificar fãs de música por coisas menores como o consumo de drogas, identificação de imigrantes ilegais ou pessoas sujeitas a mandados de prisão”, lê-se numa ilustração na página do movimento.
A afirmação parece excessiva mas o receio não é desprovido de antecedentes. Em Maio de 2018, num espectáculo de Taylor Swift no Rose Bowl em Pasadena (Los Angeles), a segurança terá conseguido identificar “stalkers” (assediadores) da artista através de um sistema de reconhecimento facial montado secretamente numa cabine que mostrava os ensaios do espectáculo.
Na China, também em 2018, um homem suspeito de crimes económicos foi preso pela polícia durante um espectáculo de Jacky Cheung, também através de um sistema de reconhecimento facial montado no recinto, conta a BBC.
A reacção dos artistas e do movimento Fight for the Future ao esforço de modernização da Ticketmaster parece apenas querer adiar o inevitável. A monitorização através de câmaras nos espaços privados e públicos não pára de aumentar: a polícia usa-os para controlar as cidades e até as lojas começam a usar estes sistemas para facilitar as compras.
Apesar de algumas cautelas (a cidade de São Francisco é um exemplo), todos os países do mundo investem em tecnologias de reconhecimento em nome da segurança colectiva, explorando inclusivamente o uso que damos à tecnologia pessoal que utilizamos todos os dias.
Se já quase ninguém questiona que o uso que damos telemóveis gera um fluxo contínuo de informação que é aproveitada pelos gigantes da tecnologia e, em última análise, pelas autoridades, é fácil concluir que dificilmente estas vão prescindir de uma ferramenta tão poderosa como o reconhecimento facial para identificar pessoas, seja onde for.