Morreu o cantor Roberto Leal, “português brasileiro, brasuca lusitano”
O artista luso-brasileiro, de 67 anos, lutava com um cancro e estava internado desde terça-feira num hospital de São Paulo, no Brasil.
António Joaquim Fernandes chegou ao Brasil em 1962, a bordo do cargueiro argentino Corrientes, juntamente com os pais e os dez irmãos, todos fugidos à miséria que, na aldeia transmontana de Vale da Porca como no resto do Portugal profundo, condenava famílias inteiras à emigração. Nove anos depois, profundamente transformado pela experiência da vida numa cidade a caminho de se tornar metrópole, o mesmo rapaz que entretanto fora feirante, vendedor de doces e sapateiro, fazia a sua primeira aparição no famoso Programa do Chacrinha. Levava “roupas espalhafatosas e o cabelo pelo ombro”, e já não se chamava António Joaquim Fernandes — tinha nascido um fenómeno luso-brasileiro, o cantor Roberto Leal.
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António Joaquim Fernandes chegou ao Brasil em 1962, a bordo do cargueiro argentino Corrientes, juntamente com os pais e os dez irmãos, todos fugidos à miséria que, na aldeia transmontana de Vale da Porca como no resto do Portugal profundo, condenava famílias inteiras à emigração. Nove anos depois, profundamente transformado pela experiência da vida numa cidade a caminho de se tornar metrópole, o mesmo rapaz que entretanto fora feirante, vendedor de doces e sapateiro, fazia a sua primeira aparição no famoso Programa do Chacrinha. Levava “roupas espalhafatosas e o cabelo pelo ombro”, e já não se chamava António Joaquim Fernandes — tinha nascido um fenómeno luso-brasileiro, o cantor Roberto Leal.
“Português brasileiro, brasuca lusitano”, como o próprio se definiu, figura pública de um lado e do outro do Atlântico, referência para milhares de emigrantes que, como ele, saíram de Portugal para se espalharem pelo mundo (e que ano após ano cá o reencontravam nas romarias de Verão), Roberto Leal morreu esta madrugada em São Paulo, no Brasil, aos 67 anos. Há três anos que lutava contra um melanoma, uma forma agressiva de cancro de pele, e estava internado desde terça-feira no Hospital Samaritano na sequência de complicações no fígado e nos rins. O seu funeral, aberto ao público, sairá esta segunda-feira da Casa de Portugal em São Paulo, onde o corpo será velado das 7h às 14h (hora local), para o Cemitério de Congonhas, na Zona Sul da cidade.
Desde terça-feira, o cantor estava internado no Hospital Samaritano, em São Paulo, na sequência de uma reacção alérgica a um medicamento, explica O Globo, citando a assessoria de imprensa do cantor, que detalhou ainda que nos últimos dias o estado de Roberto Leal se complicara devido a problemas hepáticos e renais, consequência do cancro de pele que assumira em Janeiro, no programa Domingo Show, da TV Record, ter-lhe sido diagnosticado dois anos antes.
Na altura, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dirigiu-lhe uma mensagem de apoio, difundida no programa Agora Nós, da RTP: “Queria neste momento saudar [Roberto Leal] com um grande abraço de amizade, acompanhando um período um pouco mais difícil na vida. Sobretudo saudar o papel ao longo de tantos anos na projecção da língua portuguesa (...), da música portuguesa e na ligação às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, em particular às comunidades brasileiras.” Já este domingo, Marcelo Rebelo de Sousa enviou uma nota de condolências à família, lembrando o papel do artista “junto das comunidades portuguesas, nomeadamente no Brasil”.
Conhecido tanto em Portugal como no Brasil pelo seu repertório entre o romântico e o popular, cheio de citações do folclore português, Roberto Leal lançou-se como cantor no início da década de 1970, depois de ter trabalhado alguns anos como sapateiro, vendedor de doces e feirante na cidade onde se radicou com a família, São Paulo. Arrebita, o seu primeiro êxito, em que ficam desde logo patentes as influências do cancioneiro popular português, data de 1971, o mesmo ano em que se estreou na televisão.
Ao longo dos 48 anos de carreira que se lhe seguiram (e em que esteve sempre acompanhado por Márcia Lúcia, sua mulher e parceira de composição), acumulou prémios e recordes de vendas: ganhou 30 discos de ouro, cinco de platina e dois de diamante; vendeu cerca de 17 milhões de discos. O último, Arrebenta a Festa, saiu em 2016. Mais recentemente, em 2018, foi candidato a deputado pelo estado de São Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas obteve apenas 0,04% dos votos, falhando a eleição. Já depois disso, e seguindo a indicação do PTB, apoiou Jair Bolsonaro na segunda volta das presidenciais: “Não há opção, depois de todos os acontecimentos. O Brasil atravessa a sua maior crise política, não dá para apoiar alguém que está preso e muitos do seu partido também presos, fica impossível apoiar algo que não deu certo”, explicou então ao Diário de Notícias.
Portugal por metonímia
Na década de 90, a fama de Roberto Leal teve um boost, e muito provavelmente estendeu-se a outros públicos, quando a banda brasileira Mamonas Assassinas o parodiou na canção Vira-vira (1995). “Quando os meninos estouraram com a música eu estava em Portugal. Todo mundo achava que eu ia ficar chateado, que ia processar. Meus advogados falaram que eu ganharia um bom dinheiro. Quando cheguei no Brasil vi o país todo cantando, meu próprio filho [o músico e produtor Rodrigo Leal] cantava. Eles me levaram para a nova geração, dando uma dimensão ainda maior do meu trabalho. Me tornei amigo deles”, recordou anos depois à edição brasileira da revista Caras. O cantor estava de resto ligado ao projecto Artistas Cantam Mamonas, álbum de tributo à banda cujos membros morreram em 1996 num acidente de aviação.
Profundamente religioso, Roberto Leal dizia andar sempre com uma cruz de Cristo ao peito que lhe fora oferecida, contou recentemente ao Observador, pelo médium Chico Xavier (1910-2002), um dos maiores expoentes do espiritismo brasileiro. Considerava-se protegido pelo “Céu”, como afirmou numa entrevista à revista Nova Gente em 2014: “Cheguei a ter oito carros ao mesmo tempo. No auge do sucesso e da juventude, queria mostrar que ‘podia’... E espatifava os carros todos. Um dia tive um acidente com um Mustang a 200 quilómetros/hora. O carro foi para o ferro-velho, mas como sempre, a mim nada me aconteceu.” A relação com a religião era de resto um dos tópicos centrais da sua autobiografia As Minhas Montanhas (A Grande Viagem), publicada em 2012; já antes, em 1979, protagonizara o filme O Milagre – O Poder da Fé, em que contava como o seu pai ficara cego e recuperara a visão na Capelinha de Santo Ambrósio, em Vale da Porca.
Cinco dias antes de ser internado, a 6 de Setembro, Roberto Leal fora um dos convidados do programa da Rede Bandeirantes Aqui na Band, onde parecia estar em óptima forma; acabaria por ser, inesperadamente, a sua derradeira actuação. Ali recordou, uma vez mais, como nasceu o seu nome artístico, sugestão do professor de canto: “Leal” porque chegava sempre adiantadíssimo às aulas, “Roberto” porque, profetizou o seu mentor, estava destinado a ser “o Roberto Carlos português”.
Roberto Leal radicara-se definitivamente no Brasil em 1998, depois de ter-se estabelecido em Portugal na década de 80. Mas continuava a visitar o país com enorme frequência, sobretudo nos meses de Verão (e do regresso dos emigrantes), tendo tido com a vitória no falso reality-show da RTP Último a Sair, de Bruno Nogueira, um dos seus mais recentes (e inusitados) momentos de grande popularidade. No Brasil, encarnou durante muitos anos a figura do emigrante português-tipo, com o seu sotaque a meio caminho entre os dois países que passou a vida a cruzar, como em 2014 contava ao PÚBLICO o investigador Tiago Monteiro, autor do livro Tudo Isto é Pop: “O imaginário que os brasileiros conservam da cultura portuguesa ainda é muito preso às formas tradicionais do fado, do folclore e do (neo)cançonetismo. Mesmo o Roberto Leal, que de acordo com esta percepção estereotipada representaria, por metonímia, toda a música portuguesa para o público brasileiro: quando aí residi, em 2009, ele estava às voltas com os discos de aproximação à sonoridade tradicional mirandesa, distante, portanto, da fórmula consagrada pelo Arrebita e congéneres. Mas seis meses depois estava num programa de TV do Brasil ensinando receitas de bacalhau e dançando o vira. Mesmo quando existe a possibilidade de romper com o senso comum, o Brasil faz questão de apropriar-se de Portugal a partir dele.”
Embora tenha dito até ao final que Portugal sempre foi a sua “maior dificuldade”, confessando a mágoa de ter tido de enfrentar “guetos e preconceitos” no país onde nasceu ("Eu levei 30 anos para conquistar Portugal!”, reiterou na sua última entrevista), nunca deixou de ser um português, mesmo no Brasil – e cumpria com as exigências do estereótipo, como atestam os hinos que escreveu para o clube A Portuguesa dos Desportos e para as padarias de São Paulo, e o vinho que lançou em 2016 com o grupo Pão de Açúcar e a Enoport, Aldeia Leal. Em 1999, uma sondagem da Data Folha, o instituto de pesquisa do Grupo Folha, mostrava de resto que Roberto Leal era a personalidade portuguesa mais conhecida entre os brasileiros, à frente de Pedro Álvares Cabral, Camões, Mário Soares, José Saramago e Amália. Dois anos antes, o cantor reconciliara-se finalmente com essa dupla identidade e gravara uma canção para o festejar, Português brasileiro: “No Brasil sou português/ Em Portugal sou brasileiro/ Lá eu toco guitarra/ E aqui toco pandeiro/ Às vezes em Lisboa/ Ou no Rio de Janeiro/ Agora já sei quem sou/ Sou português brasileiro// Brasuca lusitano/ Portugal tropical/ Alfacinha baiano/ Nascido em Portugal”. com Isabel Salema