Mário Moura: a história do chá dos Açores não cabe em 500 páginas

Mário Moura foi para o doutoramento para se estimular numa fase complicada da vida. No final, apresentou uma obra com mais de 500 páginas sobre a história do chá nos Açores (e não só). Já tem um segundo volume a caminho e vai propor a criação de um museu do chá.

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Rui Soares

Faz parte dos roteiros turísticos de quem vai a São Miguel, nos Açores, visitar as plantações de chá na costa norte da ilha, na cidade da Ribeira Grande. Afinal, aqueles montes verdes preenchidos por carreirinhos simétricos de camellia sinensis (planta de onde deriva o chá), são um dos postais da ilha. Os guias anunciam-nos como as “únicas plantações de chá da Europa”, o que, afinal, não é bem assim – mas já lá vamos. Mas como é que a infusão de uma planta originária da China (ou da Índia) acaba por se tornar numa das marcas da agricultura dos Açores? E porque é que as maiores plantações só resistiram nos Açores? Foi para encontrar respostas a estas perguntas que Mário Moura, natural da Ribeira Grande, escreveu A História do Chá em São Miguel (Século XIX) (edição Município da Ribeira Grande), uma obra com mais de 500 páginas, resultante da tese de doutoramento.

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Faz parte dos roteiros turísticos de quem vai a São Miguel, nos Açores, visitar as plantações de chá na costa norte da ilha, na cidade da Ribeira Grande. Afinal, aqueles montes verdes preenchidos por carreirinhos simétricos de camellia sinensis (planta de onde deriva o chá), são um dos postais da ilha. Os guias anunciam-nos como as “únicas plantações de chá da Europa”, o que, afinal, não é bem assim – mas já lá vamos. Mas como é que a infusão de uma planta originária da China (ou da Índia) acaba por se tornar numa das marcas da agricultura dos Açores? E porque é que as maiores plantações só resistiram nos Açores? Foi para encontrar respostas a estas perguntas que Mário Moura, natural da Ribeira Grande, escreveu A História do Chá em São Miguel (Século XIX) (edição Município da Ribeira Grande), uma obra com mais de 500 páginas, resultante da tese de doutoramento.

“Mário, tu que és maluquinho pela tua terra, estuda o chá, que é o que mais fama internacional lhe dá!”. Foi o assim que o primeiro orientador da tese o despertou para o tema. “Caí logo na esparrela. Eu não percebia nada de chá”, conta-nos Mário, de 63 anos, que tinha 56 quando ingressou no doutoramento, dezanove anos depois de ter feito o mestrado. Foi a maneira que encontrou para sair de uma fase de “ruptura pessoal” e de “beco profissional”: estava a divorciar-se e na vida profissional encaravam-no como “velho demais”. “Não ia cair na droga nem na bebida. Mesmo quando estou no chão e não me consigo levantar, rebolo. Parado é que não fico”.

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Avançou. Logo no primeiro ano, foi pai pela terceira vez. “Conciliar a vida familiar com um trabalho científico sério e total” foi o maior desafio. Se no princípio se sentia “inseguro” e “enferrujado”, nos últimos anos do trabalho acabou por escrever e ler “seis, oito, dez ou mais horas, ininterruptamente”. Valeram-lhe o “chá, a música zen, e os pauzinhos de incenso”; e, no final, acredita ter “contribuído para valorizar o papel de Portugal na geografia mundial do chá”.

“Ao contrário do que apregoam a historiografia britânica, holandesa e francesa, a primeira tentativa conhecida de fazer chá fora do âmbito da China e do Japão, é de Duarte de Macedo, antes de 1680, no Brasil”, afirma, assinalando que o papel dos portugueses é “totalmente esquecido ou simplesmente desvalorizado”. Mais. A primeira vez que o chá é produzido fora da Ásia por europeus é no Rio de Janeiro, em 1810 e só “na década de trinta do século XIX é que os britânicos e os holandeses começam a seguir de perto, e até a copiar, o exemplo do Brasil, entretanto já independente”. Por isso, os holandeses, muitas vezes apontados como os implementadores do chá na Europa, o que fizeram foi tornar a bebida “rentável”. E mesmo isso fizeram-no “através do circuito comercial dos portugueses”.

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“O espírito viajante dos portugueses” foi, por isso, “fundamental no desenvolvimento do chá”. Espírito viajante que Mário não partilha. Pelo menos nas viagens de avião. Em 1983, ingressou na Universidade Brown, nos Estados Unidos, para onde tinha emigrado com os pais devido às convulsões do pós-25 de Abril. Naquele ano, o que era suposto serem umas férias tornar-se-iam num regresso em definitivo à terra natal, devido a um episódio durante a viagem que fê-lo ganhar pânico dos aviões: “um homenzinho meio louco tentou abrir a porta do avião e ninguém a bordo falava inglês, a não ser eu que tive de tentar acalmá-lo”. A partir daí, desenvolveu um “pavor terrível” a aviões. Perdeu uma “bolsa choruda” da universidade norte-americana e só dez anos depois é que tirou o mestrado em Lisboa. Para as viagens entre a ilha e o continente, arranjou um meio particular: “fiz muitas viagens em barcos de transporte de gado, graças a um amigo agricultor e a outro marinheiro”. As viagens demoravam dias, mas foram “as mais maravilhosas” que fez.

Actualmente, já vai viajando pelo ar, sobretudo no Verão e com a ajuda de “calmantes”, mas tem sempre de se “preparar mentalmente com muita antecedência”. Situação restritiva para um ilhéu, mas não impeditiva: “Podemos ser globais na nossa terra, o que escrevo não está limitado à minha ilha, o meu objectivo é ser global local”. Tal como José do Canto, o açoriano “globalista”, “genial” e “visionário” que implementou o chá nos Açores no século XIX. Não foi fácil: estima-se que nas décadas de 20 e 30 tenham começado as primeiras experiências, mas só em 1878 é que é conhecida a primeira temporada do chá. Tiveram de mandar vir da China vários especialistas, por diferentes vezes, até conseguirem, naquele primeiro ano produzir “aproximadamente oito quilos de chá preto e dez de verde”. Devido a isso, se até meados do século XIX, em Portugal e na restante Europa (exceptuando a Grã-Bretanha) o consumo do chá era apenas destinado às classes mais elevadas, nos Açores toda a gente, nas nove ilhas, bebia chá “em percentagens altíssimas”.

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E porquê chá? Além de um certo “misticismo em torno do oriente”, foi uma “opção pessoal de José do Canto”. Foi também uma forma de “aproveitar uma terra fraca e desaproveitada”, uma vez que “o chá não competia com outras culturas”. A ideia do impulsionador era “implementar chá no país todo e na região ultramarina”, chegando a existir “uma proposta de lei” nesse sentido assinada por representantes do Minho, dos Açores e da Madeira.

As outras regiões acabaram por deixar cair a ideia. Os Açores, passado mais de um século, têm no chá um dos maiores símbolos da sua agricultura. Mas já não estão sozinhos, ao contrário do que sugerem alguns slogans comerciais. “Sejamos claros: os Açores não são no presente nem serão em futuro próximo os únicos a produzir chá na Europa”, adverte, relembrando que existem, mesmo que “em poucas quantidades”, plantações em Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Itália e mesmo em Portugal continental, em Vila do Conde. A característica única reside na qualidade: “os Açores poderão produzi-lo com qualidade única, devido ao solo, ao clima e à planta que aqui se desenvolveu, somos os melhores a fazer o que fazemos”. É a diferença entre o “ser o único” e o “ser-se único”.

Para o futuro, Mário já está a trabalhar num segundo volume, que já está “bem avançado” e que abordará a história do chá até aos dias de hoje. “Tenho o alicerce científico para fazer uma proposta museológica”. Quer um museu do chá, ele que já esteve na base da criação de um museu na sua cidade da Ribeira Grande, a Casa do Arcano, que expõe o artesanato (que Mário ajudou a conservar e a restaurar), da Madre Margarida, freira local que viveu durante o século XIX. “Tive o arcano, agora tenho o chá, e depois há-de vir outra coisa qualquer, não consigo é estar parado”. Uma espécie de hiperactividade que promove a história dos Açores.

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