Estar é o verbo que define a família no teatro de Tolcachir
Regresso dos Artistas Unidos à trilogia familiar do autor argentino Claudio Tolcachir. Em Emília, até 19 de Outubro no Teatro da Politécnica, a família não é definida pela biologia.
Cacerolazo. Foi este o nome que os historiadores atribuíram ao período de profunda crise económica que se abateu sobre a Argentina na viragem do século e aos protestos contra as medidas económicas do governo de Fernando de la Rúa. Em 2001, durante este período em que se dava um fortíssimo êxodo do país, o actor e encenador Claudio Tolcachir resolveu criar uma companhia de teatro na sua casa, em Buenos Aires. “Com um grupo de amigos, pusemo-nos a equipar uma sala e a ensaiar para não morrermos de angústia”, confessou ao jornal La Nacion. “A verdade é que nos salvou a vida. Não me esqueço de que os actores que integram o elenco dos Coleman ensaiaram gratuitamente durante um ano inteiro, da meia-noite às quatro da manhã, para fazer uma peça que eu, sem qualquer experiência, escrevia.”
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Cacerolazo. Foi este o nome que os historiadores atribuíram ao período de profunda crise económica que se abateu sobre a Argentina na viragem do século e aos protestos contra as medidas económicas do governo de Fernando de la Rúa. Em 2001, durante este período em que se dava um fortíssimo êxodo do país, o actor e encenador Claudio Tolcachir resolveu criar uma companhia de teatro na sua casa, em Buenos Aires. “Com um grupo de amigos, pusemo-nos a equipar uma sala e a ensaiar para não morrermos de angústia”, confessou ao jornal La Nacion. “A verdade é que nos salvou a vida. Não me esqueço de que os actores que integram o elenco dos Coleman ensaiaram gratuitamente durante um ano inteiro, da meia-noite às quatro da manhã, para fazer uma peça que eu, sem qualquer experiência, escrevia.”
A peça que acabou por sair desse trabalho de partilha absoluta e de fé na escrita de Tolcachir chama-se A Omissão da Família Coleman, estreou-se em 2005 e transferiu-se depois da casa do encenador para um apartamento na vizinhança onde a companhia Timbre 4 se instalou. E foi acumulando filas à porta durante anos, com mais de 2 mil representações para quatro ou cinco dezenas de espectadores por sessão, até que o seu sucesso levou a uma prolongada digressão internacional. Foi assim que o encenador Jorge Silva Melo se cruzou com Tolcachir, assistindo à família em ruínas que o argentino trouxe até ao Centro Cultural de Belém em Março de 2009. “Por agora, ainda não consigo libertar-me da encenação original — que vi e que acho uma obra-prima”, confessa Silva Melo. Por isso, os Artistas Unidos avançaram primeiro com uma encenação colectiva de Um Vento no Violino e o fundador da companhia assina agora a direcção de Emília — em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, até 19 de Outubro.
De certa forma, essas duas peças que completam a trilogia iniciada com a Família Coleman mostram como Tolcachir nunca saiu da sua casa, do ambiente doméstico em que começou a ensaiar uma linguagem dramatúrgica, rodeado de actores que se transformavam numa família à beira do abismo. “O que é engraçado é que já não é a família do Tennessee Williams, desagregada, da Gata em Telhado de Zinco Quente”, analisa Silva Melo. “E já não é a família melancólica do Tchékhov, a vender as propriedades, nem sequer a família agressiva do Fassbinder. É uma família que se deseja, mas não a biológica.”
Em Emília, é a família para além dos laços de sangue que vemos a pulsar diante de nós. Tanto assim que, para Silva Melo, um dos momentos cruciais da peça é quando Walter (Américo Silva) se dirige a Gabriel (Pedro Carraca) e resume “família” ao verbo estar: “Quando adoecem é preciso estar, quando choram de medo... Quando se cagam pelas pernas abaixo também é preciso estar.” E aponta o exemplo de Emília (Isabel Muñoz Cardoso). Tudo se explica aí — Emília diz-nos nos minutos iniciais que deve o seu nome à tia que amamentou a sua mãe. Depois, ficamos a saber que Emília foi a ama de Walter, autêntica mãe e cuidadora deste que, por sua vez, ao casar-se com Carol (Andreia Bento) assumiu o filho desta como se fosse também seu. “Esta é uma família que se deseja”, sublinha Silva Melo. Até mesmo Gabriel, o pai biológico do adolescente, figura distante e ausente, surgido para desestabilizar a aparente união entre os outros, mas tentando, atabalhoadamente, redimir-se.
E “aparente união” porque Carol nunca esconde um desconforto crescente. Até ao momento em que é retirada da equação familiar, como se os seus laços sanguíneos estivessem a mais no quadro. Fica, afinal, Emília, a mulher que levou Walter ao cinema pela primeira vez, que o levou ao seu primeiro baile, a quem ele contou o seu primeiro beijo. E da mesma maneira que em O Vento num Violino a chegada de um bebé era a desesperada tentativa de salvação daquela família, também aqui é a Emília que é pedido que se assuma como a cola capaz de manter todos juntos. Como bem sabemos, na verdade, é a família que se sacrifica nos momentos capitais.