Encontro de gerações em dois concertos inesquecíveis
A Orquestra Juvenil Gustav Mahler terminou a sua digressão de Verão em Lisboa, na companhia do barítono Christian Gerhaher e do maestro Herbert Blomstedt.
Depois de Bolzano, Salzburgo, Amesterdão, Essen, Dresden, Pordenone e Frankfurt, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler (OJGM) terminou a sua digressão deste Verão no passado fim-de-semana em Lisboa, no Grande Auditório da Gulbenkian, com dois magníficos concertos que contaram com o barítono Christian Gerhaher como solista e com a sábia direcção de Herbert Blomstedt, uma personalidade extraordinária não só pelas suas qualidades musicais e pelo seu conhecimento profundo de estilos e repertórios, mas também pela longevidade da sua carreira. Com 92 anos, o maestro sueco, nascido nos Estados Unidos, mostrou-se em plena forma, transmitindo uma invejável energia em várias interpretações marcantes.
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Depois de Bolzano, Salzburgo, Amesterdão, Essen, Dresden, Pordenone e Frankfurt, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler (OJGM) terminou a sua digressão deste Verão no passado fim-de-semana em Lisboa, no Grande Auditório da Gulbenkian, com dois magníficos concertos que contaram com o barítono Christian Gerhaher como solista e com a sábia direcção de Herbert Blomstedt, uma personalidade extraordinária não só pelas suas qualidades musicais e pelo seu conhecimento profundo de estilos e repertórios, mas também pela longevidade da sua carreira. Com 92 anos, o maestro sueco, nascido nos Estados Unidos, mostrou-se em plena forma, transmitindo uma invejável energia em várias interpretações marcantes.
Visita assídua na Gulbenkian, a orquestra fundada em 1986 por Claudio Abbado (1933-2014) é uma espécie de montra, no melhor sentido do termo, da excelência musical das novas gerações, sendo composta por instrumentistas com idades inferiores aos 26 anos, seleccionados anualmente entre mais de 2000 candidatos oriundos dos vários países da Europa. A participação portuguesa tem sido constante nos últimos anos, tendo integrado esta digressão as violinistas Catarina Resende e Sara Sousa Cymbron, os violetistas Cátia Sousa dos Santos e Francisco Vassalo Lourenço, a contrabaixista Francisca de Sá Machado, o flautista David Lopes e Silva e os trompistas José Teixeira e Nuno Nogueira.
O concerto de sábado iniciou-se com o poema sinfónico Morte e Transfiguração, op. 24, de Richard Strauss, emblemático exemplo de música programática, inspirada num poema de Alexander Ritter, que retrata as inquietações de um artista moribundo e a sua subsequente transfiguração quando ascende a outra dimensão. A linguagem musical contrastante usada por Strauss para caracterizar estes dois planos e a carga dramática da composição foram adequadamente enfatizadas pela interpretação, mas nesta obra inicial a OJGM permaneceu um pouco aquém das suas capacidades. A verdadeira transfiguração, aplicando aqui o conceito ao domínio técnico e artístico superlativo, deu-se com a Sinfonia nº 3, Heróica, de Beethoven, na segunda parte. Blomsted e os jovens instrumentistas da OJGM ofereceram-nos uma versão impecável, tanto ao nível da arquitectura sonora (através da precisão dos fraseados, da nitidez dos planos, da textura e dos contrastes rítmicos e dinâmicos) como da dramaturgia, das tensões e do carácter épico do discurso musical. A sedução tímbrica das cordas, das madeiras e dos metais e o seu bem doseado jogo de equilíbrios ficaram bem evidentes num percurso empolgante que culminou no luminoso Allegro molto final, cuja engenhosa série de variações permitiu confirmar novamente a qualidade expressiva dos diferentes naipes.
Bem mais contida, como o carácter da própria obra pedia, mas não menos surpreendente, foi a interpretação dos Rückert Lieder, de Mahler. Christian Gerhaher teve uma prestação pautada pela nobreza e pela sobriedade, não obstante o uso de uma considerável paleta dinâmica. O seu canto assenta numa articulação meticulosa do texto, que tira partido da fonética da língua alemã, sendo igualmente muito atento à relação texto-música do ponto de vista semântico. Esta abordagem do detalhe resulta fascinante em várias passagens, mas deixa por vezes em segundo plano o grande arco dos fraseados. O barítono alemão e a orquestra mostraram-se em boa sintonia, tendo atingido uma simbiose ainda mais conseguida no concerto de domingo, com as Canções Bíblicas, op. 99, de Dvorák. Agora num âmbito estilístico diverso, e contando com o peculiar colorido da língua checa, Gerhaher manteve a mesma atitude em relação à dicção e à sonoridade do texto, bem como ao conteúdo dos poemas, transmitindo de forma sugestiva os inúmeros estados de alma que percorrem estas belíssimas canções baseadas em salmos da Bíblia de Kralice, a primeira tradução para checo das Sagradas Escrituras, e detentoras de uma linguagem de grande riqueza melódica e harmónica, permeável às influências do folclore eslavo.
A formação instrumental mais reduzida usada em Dvorák deu lugar à monumental formação sinfónica exigida pela Sinfonia nº 6, de Bruckner. Apesar dessa enorme massa orquestral, Blomsted e a OJGM mantiveram a transparência do discurso e a propulsão rítmica, numa interpretação mais uma vez marcante que superou com destreza as exigências da audaciosa partitura de Bruckner. Tal como tinha acontecido no concerto do dia anterior, gerou-se grande entusiasmo na assistência, que aplaudiu longamente de pé e foi premiada com a repetição do Scherzo numa interpretação ainda mais contagiante.