Preservação de fígados para transplante passa de nove para 27 horas

Conseguiram-se manter no exterior do corpo cinco fígados durante mais de um dia a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos.

Fotogaleria

Por mais pequeno que seja, o aumento do tempo de preservação de um órgão fora do corpo humano pode ser crucial para o sucesso de um transplante. Agora, através de um novo método, uma equipa internacional de cientistas triplicou o tempo de preservação de fígados humanos no exterior do corpo humano relativamente ao que era feito no uso clínico. De acordo com um estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature Biotechnology, esse grupo de investigadores conseguiu conservar esse órgão durante 27 horas a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos. Falta confirmar estes resultados com mais experiências, mas esta nova técnica de arrefecimento pode aumentar a disponibilidade de fígados para transplantação.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Por mais pequeno que seja, o aumento do tempo de preservação de um órgão fora do corpo humano pode ser crucial para o sucesso de um transplante. Agora, através de um novo método, uma equipa internacional de cientistas triplicou o tempo de preservação de fígados humanos no exterior do corpo humano relativamente ao que era feito no uso clínico. De acordo com um estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature Biotechnology, esse grupo de investigadores conseguiu conservar esse órgão durante 27 horas a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos. Falta confirmar estes resultados com mais experiências, mas esta nova técnica de arrefecimento pode aumentar a disponibilidade de fígados para transplantação.

Em 1954, o médico Joseph Murray fez o primeiro transplante de um órgão humano (um rim) com sucesso (o doente viveu alguns dias) e pelo seu trabalho relacionado com a transplantação recebeu o Nobel da Medicina em 1990. Já em Portugal, o primeiro transplante de órgãos vital foi feito precisamente há 50 anos (a 20 de Julho de 1969) pelo cirurgião Linhares Furtado. Desde então, apesar dos vários desenvolvimentos desta área, a transplantação de órgãos continua a enfrentar limitações, como a curta duração de preservação de órgãos fora do corpo humano.

“O grande problema é que a actual tecnologia preserva pouco tempo os órgãos fora do corpo”, assinala ao PÚBLICO Reinier de Vries, do Centro de Engenharia em Medicina da Faculdade de Medicina de Harvard e do Hospital Geral do Massachusetts (EUA) e primeiro autor do estudo. “Actualmente, a transplantação é uma corrida contra o relógio. Isto causa grandes problemas logísticos que resultam em órgãos descartados, porque, por vezes, o tempo se esgota.”

Em Portugal, no final de 2018, estavam na lista de espera para transplante 2186 doentes, colheram-se 1042 órgãos e fizeram-se 829 transplantes, de acordo com os dados do Instituto Português do Sangue e Transplantação (IPST). Enquanto estavam à espera de um órgão, 78 doentes morreram. “Pelo facto de um doente ter falecido em lista activa [de espera] não significa que esta seja a causa do óbito; co-morbilidades associadas podem ser relevantes”, salienta-se na resposta enviada pelo IPST. Nos primeiros meses deste ano, já se transplantaram 506 órgãos, mais 36 em relação ao mesmo período do ano passado.

Quanto aos transplantes hepáticos, em 2018 colheram-se em Portugal 266 fígados e fizeram-se 232 transplantes. Além disso, 18 doentes que estavam na lista de espera morreram e 113 aguardavam por um transplante hepático.

A equipa de Reinier de Vries pretende melhorar este tipo de números ao aumentar a duração da preservação de órgãos. Para isso, começou por fazer experiências com fígados.

Foto
Reinier de Vries a aplicar o novo método Jeffrey Andree/Reinier de Vries/Korkut Uygun

Até agora, a melhor preservação de fígados fora do corpo humano era feita numa caixa com gelo com uma solução especial a cerca de quatro graus Celsius. E, embora a duração máxima nessa caixa fosse de menos de 12 horas, no uso clínico a média era de quase nove horas. Depois dessas horas, os tecidos do órgão começavam a ficar com danos irreparáveis e este já não podia ser usado num transplante.

Num comunicado sobre o trabalho na Nature Biotechnology, os autores destacam que, com temperaturas abaixo de zero, os órgãos podem sobreviver mais tempo. Mas há contrapartidas: se os fígados congelarem poderão ficar com grandes danos – tal como acontece com as queimaduras causadas pelo frio na pele –, o que torna o órgão inutilizável para transplante.

Em estudos anteriores, através de um método de “super-arrefecimento” (como lhe chamam os autores) que não causou danos no órgão, a mesma equipa já tinha mostrado que era possível preservar fígados de ratos a seis graus Celsius negativos. “Contudo, este método de super-arrefecimento poderá tornar-se exponencialmente mais difícil quando o volume [do órgão] aumenta, porque é mais difícil de impedir a formação de gelo em temperaturas abaixo de zero”, esclarece Reinier de Vries. “Havia muitos especialistas que diziam: ‘Bem, isto é fantástico para os pequenos ratos, mas não irá funcionar em humanos.’” Afinal, o fígado dos humanos é 200 vezes maior do que o dos ratos.

A correspondência perfeita

Agora, a equipa de Reinier de Vries conseguiu usar o mesmo método em cinco fígados humanos. No que consiste então? Primeiro, têm de se aplicar no fígado agentes protectores que combatem a formação de gelo e protegem do frio as células do órgão. Para homogeneizar esse “cocktail protector” a todo o fígado, usa-se uma máquina de perfusão. Depois, ensaca-se e coloca-se o órgão num refrigerador a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos. Por fim, removem-se os sacos e os agentes protectores do fígado e “resgata-se” o órgão do armazenamento super-refrigerado através da máquina de perfusão.

Ao todo, preservaram-se então cinco fígados durante 27 horas a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos. “Pela primeira vez, conseguimos mostrar a viabilidade da preservação de órgãos humanos doados em temperaturas abaixo de zero. Há décadas que investigadores tentavam preservar órgãos em temperaturas abaixo de zero!”, assinala Reinier de Vries. Mesmo assim, o cientista refere que ainda têm de ser feitas mais experiências até que este método chegue ao uso clínico.

Nos próximos tempos, o trabalho da sua equipa passará mesmo por transferir este método de preservação de fígados do laboratório para o uso clínico. Em laboratório, também já estão a aplicar este método em rins e ovários. “Estamos entusiasmados com os resultados preliminares nos estudos com animais”, adianta Reinier de Vries.

“O tempo extra trazido pela técnica poderá fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso de um transplante de fígado”, considera no comunicado Shannon Tessier, também da Faculdade de Medicina de Harvard e autora do trabalho. “Muitas vezes, quando um órgão fica disponível, não há uma boa correspondência próxima [entre o órgão e um doente]. Por isso, em termos de atribuição de um órgão, quando temos mais tempo pode-se procurar a uma distância maior [esse doente] e ter assim a oportunidade de obter uma excelente correspondência.” Este método de super-arrefecimento pode assim aumentar a disponibilidade de órgãos para transplantação, diminuir os descartados, melhorar a sua utilização e reduzir o tempo de procura de um órgão para um doente.