Lavores femininos
Quando chegou o tricot, chegou também a adolescência e a falta de vontade para fazer o que nos mandam.
Envia-me uma mensagem escrita, mas consigo imaginar o seu sorriso: “Olá, já comprei o workshop.” Pergunto-me do que fala e recordo que em tempos mencionámos a palavra “tricot”, numa conversa que para mim foi igual a tantas outras que começam com “um dia, eu gostava de...”, mas que para esta amiga foi um desejo que ela podia ajudar-me a concretizar. E ali estava aquela mensagem a confirmá-lo.
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Envia-me uma mensagem escrita, mas consigo imaginar o seu sorriso: “Olá, já comprei o workshop.” Pergunto-me do que fala e recordo que em tempos mencionámos a palavra “tricot”, numa conversa que para mim foi igual a tantas outras que começam com “um dia, eu gostava de...”, mas que para esta amiga foi um desejo que ela podia ajudar-me a concretizar. E ali estava aquela mensagem a confirmá-lo.
E, no dia combinado, lá estou eu, outras quatro jovens mulheres e um professor norte-americano reformado, prontos para aprender ou reaprender o que ficou esquecido na infância. Sentada num banco de madeira, com lã a passar-me pela curva do pescoço e a transformar-se em pontos, vou regressando à infância, e vejo a minha mãe, na cadeira de balouço, a fazer-me uma camisola branca e em dois tons de azul quando eu pedi uma preta com sete listas, da cor do arco-íris, no peito, como os surfistas tinham. Muito mais simples do que aqueles triângulos, ora em azul-claro, ora em azul-escuro...
A conversa entre os iniciantes ao tricot vai fluindo, com lembranças de avós que ensinaram. Avós a quem se recorre quando há uma dúvida. E eu penso naquilo que me pareceram horas, sentada no banquinho da cadeira de balouço, de braços esticados, a segurar meada atrás de meadas, enquanto a minha mãe fazia novelos.
Com a minha mãe e a minha avó aprendi a fazer meio-ponto, ponto de cruz, de Arraiolos, a cerzir meias e a coser botões, crochet e tricot. Por esta ordem. Quando chegou o tricot, chegou também a adolescência e a falta de vontade para fazer o que nos mandam. A cabeça está em todo o lado menos concentrada naquele fio que passa de uma agulha para a outra. Tantos livros para ler, tanta música para ouvir. Enganava-me frequentemente, havia malhas que caíam, contagens perdidas e desmanchos constantes.
E agora ali estava, a fazer tudo tão bem, pontos, uns atrás dos outros, com uma rapidez surpreendente. Desde os 13 ou 14 anos que não o fazia. O tricot é como andar de bicicleta, rio-me para mim. A maturidade tem destas coisas, reflicto.
“Como é que correu?”, quer saber a minha amiga, pelo telefone, mal abandono o workshop. “Um dia gostava...” Não, não posso dizer-lho, senão ainda vai acontecer alguma coisa, temo, mas as palavras saem-me tão depressa da boca que, em breve, tenho quatro projectos no meu email, para escolher um. Esta minha amiga tem mesmo um dedo de génio da lâmpada mágica!
As férias começam e além do protector solar compro lãs, as agulhas são da minha amiga ou da mãe dela, que as da minha mãe estão num lugar insondável. É à frente do YouTube que recordo como se fazem as laçadas para começar. Leio e releio as instruções em inglês e amaldiçoo a leviandade com que digo “um dia eu gostava...” “Kfbf, o que raio quer isto dizer? Como se faz?”, e lá vou eu ver mais uma colecção de vídeos para perceber como se faz. Troco mensagens com a génio da lâmpada. “Meteste-me nisto...”, justifico-me, sem vergonha, e feliz por partilharmos um interesse.
“Pareces uma avozinha? Não me digas?... É um menino ou uma menina?”, ouço na praia, às amigas que se riem e estranham o hobby. Mau, é assim que começam os boatos, ralho. Troco a leitura pelo tricot. “Estás obcecada”, dizem-me ao ver-me afincadamente a tricotar. Ao começar, lembrei-me por que tinha abandonado a malha: perco-me a contar malhas. Não há raízes quadradas nem uma equação de segundo grau, é só contar, 1, 2, 3... Vou na 105.ª ou na 111.ª malha? Leio mal as instruções e desmancho. Deixo cair malhas e volto a desmanchar. Perco-me nas contagens e agarro-me a um caderno para manter o número de pontos e carreiras em dia. “Por que não fazes um cachecol?”, pergunta-me um filho já pouco solidário com as minhas lamúrias.
E procuro tirar daqui uma lição: estamos sempre a recomeçar, às vezes parece tudo perfeito, mas, olhando de perto, ali está um buraquinho, é uma malha caída. Se a ignorarmos, ela vai continuar a cair, tornando o buraco difícil de ser ignorado. Não há volta a dar, há que desmanchar e não desistir. Recomeçar, recomeçar sempre. Vamos ganhando o jeito, não repetimos os erros, chegaremos à perfeição? O projecto vai a meio, deve estar pronto para o Natal.