No entanto, ela move-se
Por muito que o reaccionarismo religioso tente, como sempre, travar o avanço social e conspurcar o bom funcionamento democrático — inclusivamente através do financiamento da onda populista que nos tenta atropelar —, nós vamos continuar a dizer, num grito de séculos: E pur si muove!
A história da relação entre religião e ciência é marcada por braços de ferro codificados no ADN do pensamento ocidental, na revolução do(s) iluminismo(s) e na consequente cultura de direitos humanos que daí resultou. A aproximação assimptótica entre o que a ciência e a religião aceitam como verdade não resultou de uma aprendizagem simbiótica, mas sim da bruta confrontação com a materialidade do mundo e do universo, tão bem representada no episódio do julgamento de Galileu (1633): após ver-se obrigado a abjurar o heliocentrismo, pronunciou a frase “E pur si muove!”.
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A história da relação entre religião e ciência é marcada por braços de ferro codificados no ADN do pensamento ocidental, na revolução do(s) iluminismo(s) e na consequente cultura de direitos humanos que daí resultou. A aproximação assimptótica entre o que a ciência e a religião aceitam como verdade não resultou de uma aprendizagem simbiótica, mas sim da bruta confrontação com a materialidade do mundo e do universo, tão bem representada no episódio do julgamento de Galileu (1633): após ver-se obrigado a abjurar o heliocentrismo, pronunciou a frase “E pur si muove!”.
A intromissão da religião na compreensão dos fenómenos naturais não se circunscreve a um passado persecutório, mas a uma longa tentativa de deturpação de proposições científicas. É exemplo disto não só o célebre debate (1860) entre T. H. Huxley e Wilberforce, bispo de Oxford, como também a célebre admoestação que o padre e cosmólogo belga, Georges Lemaître, proponente do Big Bang, aplicou honrosamente ao Papa Pio XII quando este apresentou aquela hipótese científica como evidência da existência de Deus (1951).
O mais recente exemplo dessa intromissão é a criação do conceito de “ideologia de género”, alicerçado em teorias da conspiração anti-feministas (e.g. Dale O’Leary), e arquitectado nos anos 90 por Ratzinger. O que parecia não ser mais do que o reaccionarismo de uma cultura institucional que apenas aos seus seguidores dizia respeito, tem penetrado a secularidade das democracias liberais, sendo actualmente um dos maiores motores das guerras culturais que mais têm contribuído para a actual ascensão da direita populista.
Como se não bastasse o papel privilegiado que a Igreja Católica exerce nas instituições portuguesas, materializado numa concordata incompreensível e indefensável à luz do secularismo da nossa Constituição, com luz verde para a doutrinação religiosa na escola pública, a Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé veio recentemente alertar para a importância desses espaços na escola pública servirem para a sua cruzada contra o leviatã da “ideologia de género”. Na base, o famigerado despacho 7247/2019, que não veio fazer mais do que concretizar o que há cerca de um ano estava contido na Lei da Identidade de Género 38/2018.
Uma vez que o despacho tem como propósito a melhoria da qualidade de vida de crianças e jovens trans, interessa perceber se a Igreja Católica portuguesa está a continuar o braço de ferro com a ciência, que nos mostra que a relação entre sexo e género é complexa, que as identidades trans existem, que crianças e adolescentes trans apresentam maior risco de serem discriminadas e mais sintomatologia psicopatológica, e que a antropologia cultural nos mostra que as identidades trans fazem parte da diversidade humana (e.g. two-spirit nos povos nativos da América do Norte; hijra na Índia e no Paquistão; muxe no México — para uma leitura aprofundada da variabilidade sexual e de género, ver Evolution Rainbow, de Joan Roughgarden).
A Igreja Católica portuguesa tem tentado travar o reconhecimento da existência das crianças e adolescentes com identidades trans, a sua protecção e promoção da sua segurança e qualidade de vida. Mas, por muito que o reaccionarismo religioso tente, como sempre, travar o avanço social e conspurcar o bom funcionamento democrático — inclusivamente através do financiamento da onda populista que nos tenta atropelar —, nós vamos continuar a dizer, num grito de séculos: E pur si muove!