Ciao Salvini: um clássico da arte política
A queda de Salvini deixa um tema de reflexão aos europeus: a ascensão dos nacionalismos não é afinal irresistível.
A queda de Matteo Salvini e a rapidíssima substituição de uma maioria por outra – e para conduzir uma política oposta à anterior – dão a ideia de uma Itália esdrúxula, a já normal “anomalia italiana”. No entanto, para lá da surpresa e da eficácia de uma grande manobra política, sobra um tema de reflexão para os europeus: a “irresistível ascensão” de Salvini não era afinal irresistível. O surto dos populismos e nacionalismos faz-se sentir em todas as geografias e atinge as mais sólidas democracias, o que alimenta um compreensível sentimento de fatalidade.
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A queda de Matteo Salvini e a rapidíssima substituição de uma maioria por outra – e para conduzir uma política oposta à anterior – dão a ideia de uma Itália esdrúxula, a já normal “anomalia italiana”. No entanto, para lá da surpresa e da eficácia de uma grande manobra política, sobra um tema de reflexão para os europeus: a “irresistível ascensão” de Salvini não era afinal irresistível. O surto dos populismos e nacionalismos faz-se sentir em todas as geografias e atinge as mais sólidas democracias, o que alimenta um compreensível sentimento de fatalidade.
O exemplo italiano mostra que esses movimentos podem encerrar mais fraquezas do que se pensa. Cada país é um caso. Em França, a ascensão de Marine le Pen foi anulada pela irrupção de Macron. Confirmou-se que Le Pen tinha um “tecto de vidro”, um patamar eleitoral que chegou aos 30% mas que ela não conseguia ultrapassar. Na Itália, os alarmes decorriam do facto de Salvini e a Liga terem passado de 17% dos votos nas eleições de 2018 para cerca de 38% nas sondagens deste ano. Por isso, e antes que os ventos mudassem, ele exigiu eleições, forçou a ruptura da coligação com o Movimento 5 Estrelas (M5S) e a demissão do primeiro-ministro, Antonio Conte. Mas disse duas palavras fatais: “plenos poderes”.
Não foram os eleitores a afastá-lo mas uma inesperada reacção do sistema político, com o apoio dos líderes europeus que não podiam tolerar uma radicalização da deriva italiana como, e sobretudo, a sua explosiva coincidência com o “Brexit” britânico. Salvini não caiu em eleições, foi constitucionalmente afastado pelas instituições. Havia no Parlamento uma maioria alternativa. Vale a pena passar os olhos pela operação, que ficará como um clássico da “arte política” italiana.
Cerco e ataque
O primeiro-ministro Conte, apoiado no Presidente Sergio Mattarella, foi um actor de primeiro plano. À medida que o governo se tornava “ingovernável”, foi assumindo um papel mais activo, na Itália e na Europa. Em Julho, o apoio do M5S e do PD à eleição de Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia, contra os votos da Liga no Parlamento Europeu, marcou a ruptura política da coligação. Conte tornou-se num obstáculo que Salvini decidiu abater. Note-se que, se a Liga dominava as sondagens, Conte era o político que merecia maior confiança, bem acima do chefe da Liga.
Em Julho, a situação parecia favorecer a estratégia de Salvini, que não hesitou em entrar em confronto com as instituições, o Presidente da República, o chefe do governo, a magistratura, os meios financeiros, o Vaticano. A maioria alternativa, M5S e Partido Democrático (PD), parecia uma “bluff para assustar a Liga”. O secretário-geral do PD, Nicola Zingaretti, queria eleições para assumir o controlo real do partido, já que a maioria dos parlamentares pertencem à corrente do ex-líder, Matteo Renzi. E este era, desde as eleições de 2018, o maior obstáculo a qualquer entendimento com os “grillini”.
Por sua vez, tanto o patrão do M5S, Davide Casaleggio, como o seu “chefe político”, Luigi Di Maio, foram até demasiado tarde partidários da aliança com a Liga e fiéis à palavra de ordem “com o PD nunca”. O M5S estava resignado à convocação de eleições, contando com a popularidade de Conte, que deveria ser o seu cabeça de lista.
O quadro mudou através de três iniciativas políticas. No dia 10 de Agosto, o comediante Beppe Grillo interrompeu o seu “exílio” e regressou às lides lançando um apelo de mobilização contra a Liga: “Erguer-me-ei para salvar a Itália dos novos bárbaros, não se pode deixar o país na mão de gente deste género (…).”
Horas depois, Matteo Renzi , numa entrevista ao Corriere della Sera, lançava a sua “bomba”: teoriza a necessidade de um acordo com o M5S para anular o “perigo Salvini”. No dia 20, no Senado, Conte demite-se e ataca frontalmente um Salvini perplexo com a mudança de estilo do primeiro-ministro. Ao demitir-se, Conte assumia, de facto, o encargo da mudança de governo. As cartas do M5S e do PD mudavam subitamente. “Sem Grillo e sem Renzi, votava-se em Outubro”, titulou um editorialista.
Em toda esta crise, esteve omnipresente a figura silenciosa de Mattarella. O Presidente tinha muitas razões para travar Salvini. Desaprovava a sua linha eurocéptica e nacionalista, tal como a sua brutalidade no tratamento da questão migratória. Preocupado com a crise económica e as exigências de Bruxelas sobre o défice, não podia aceitar a impossibilidade de aprovar a lei do Orçamento e o risco da explosão dos juros da dívida.
Há ainda um relevante factor escondido nesta crise. A legislatura deverá teoricamente durar até 2023. A eleição do futuro Presidente terá lugar em princípios de 2022 e Mattarella, ao contrário de Salvini, desejaria que ele fosse eleito pelo actual Parlamento e não por câmaras em que a Liga venha ser hegemónica. Está em jogo o respeito pelo equilíbrio dos poderes. 2022 parece um horizonte demasiado longínquo. Mas é uma data que os partidos têm em conta nos seus cálculos.
As incógnitas
Restam as incógnitas. A relação entre o PD e o M5S não é pacífica e, sobretudo, ambos os partidos atravessam uma fase de marcada insegurança. As bases estão nervosas. O PD não resolveu a questão central da sua identidade política: esquerda ou centro? O M5S viu desabar os seus dogmas. Di Maio não era o líder real, mas um porta-voz de Casaleggio. Deram-lhe uma “poltrona dourada”, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para o afastar da política nacional. Na Itália, a política externa é ditada pelo primeiro-ministro e pelo Presidente. Di Maio é um “chefe político” no ocaso.
O programa de governo foi improvisado em poucos dias e supõe uma substancial mudança – na política económica, na imigração ou nos assuntos europeus. De momento, PD e M5S confiaram o equilíbrio ao primeiro-ministro Conte, que aproveitou esta crise para se emancipar da sombra do Cinco Estrelas. O primeiro e temível teste será a elaboração do Orçamento pouco popular.
Salvini passa para a oposição. Será o terreno mais favorável? Aposta, evidentemente, no fiasco da aliança PD-M5S. Mas a sua vertiginosa ascensão deveu-se ao facto de estar no poder. Conseguiu impor a sua hegemonia e a sua agenda dentro do governo, explorando temas como a segurança e a crise migratória, sempre beneficiando da contínua exposição mediática. Conseguiu que um grande número de italianos se identificassem, não com a sua ideologia, mas com o seu estilo e a imagem de “homem forte”. Como será fora do poder?
Afinal de contas, toda a agitação de Agosto se resumiu numa operação: destituir Salvini.