Bebé Matilde – um caso de estudo
Considerações sobre terapia génica, farmacêuticas e o Serviço Nacional de saúde.
A atrofia muscular espinhal tipo I (Werdnig-Hoffmann, W-H) é uma doença devastadora e é com enorme dificuldade que se informam os pais de que os problemas destes bebés (fraqueza e atrofia muscular, problemas respiratórios e outros) se irão progressivamente agravar e morrerão a muito curto prazo e, também, que, em relação a novos filhos, existe um elevado risco de repetição (25% em cada gravidez).
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A atrofia muscular espinhal tipo I (Werdnig-Hoffmann, W-H) é uma doença devastadora e é com enorme dificuldade que se informam os pais de que os problemas destes bebés (fraqueza e atrofia muscular, problemas respiratórios e outros) se irão progressivamente agravar e morrerão a muito curto prazo e, também, que, em relação a novos filhos, existe um elevado risco de repetição (25% em cada gravidez).
É uma doença genética recessiva causada por deleções ou mutações dum gene (SMN1) produtor duma proteína que é responsável pela manutenção da função dos neurónios motores, que controlam as actividades musculares, e, porque os pais apenas transmitem o gene alterado, o gene normal, capaz de produzir a indispensável proteína, está ausente. Segundo a literatura, há um doente com W-H em cada 6000-8000 recém-nascidos vivos. Porque o número de recém-nascidos, em 2018, foi em Portugal de 87.000, teremos, em cada ano, dez a 12 novos doentes. Felizmente estão a surgir terapêuticas que intervêm na progressão dos sintomas e alteram a muito curta expectativa de vida, incluindo uma novíssima e promissora terapia génica baseada na introdução precoce do gene normal, antes que as funções musculares se degradem, e através dum vector de transporte viral (adenovírus) que o contém.
A terapia génica, dirigida a outras patologias genéticas, iniciou-se há 30 anos. Ashanti de Silva, uma menina de quatro anos com grave défice imunitário, de causa genética recessiva e por deficiência de produção da enzima adenosina-diaminase, foi o primeiro doente sujeito a este tipo de terapia, em Bethesda (EUA), em Setembro de 1990. Era uma variante menos grave dos chamados “bebé-bolha”, separados do ambiente em redor, porque, em contacto com o ambiente normal, não resistiriam às infecções. Foi-lhe retirado sangue e extraídos linfócitos que foram cultivados e suplementados com o gene normal através dum vector (retrovírus) e, após esta modificação, novamente introduzidos sob a forma de mini-transfusões. Foi um êxito e, com o aumento da produção da enzima, a imunidade foi recuperada, embora esta jovem, de 33 anos, mantenha, até hoje, as transfusões periódicas. Estudou, dá entrevistas e tem uma vida normal. Tem sentido de humor e, afirmando-se muito grata aos médicos, confessa que ainda os receia, assim como aos jornalistas.
O aparecimento de leucemias em alguns doentes e, em 1999, a morte, durante um ensaio clínico, dum rapaz por sepsia generalizada, após a administração do vector viral, levou a ser decidida nos EUA (pela FDA) a interrupção destes ensaios clínicos. Com os estimulantes avanços técnico-científicos, esta terapia voltou a ser considerada em várias patologias genéticas. Mas ainda há efeitos secundários desconhecidos para os doentes e a publicitada eficácia a longo prazo, através duma única dose, não está confirmada.
Porque a terapia agora utilizada na bebé Matilde e, para já, noutra criança foi totalmente comparticipada pelo Estado português poderá ter custado quatro milhões de euros e é iníqua em relação ao apoio habitual aos restantes doentes do Serviço nacional de Saúde (SNS). Porque se trata do mesmo SNS que, muito maltratado pelas restrições acéfalas no tempo da crise, onde, por constrangimentos financeiros, constantemente evocados pelo governo, hoje são recusadas ou adiadas oportunas solicitações das administrações hospitalares e há, como todos sabemos, falta de pessoal médico e não-médico, de meios auxiliares de diagnóstico (alguns sem a adequada manutenção e outros já obsoletos) e, também, constantes atrasos na compra de medicamentos ou outras terapias indispensáveis para a cura e infinitamente menos onerosas do que o Zolgensma, incluindo oncológicas.
Porque foi neste SNS, ainda com muita resiliência, principalmente graças aos profissionais, mas com graves problemas por falta de verbas e de apoio adequado e atempado a muitas situações, que, primeiro do que outros, mais cautelosos, países europeus, foi aceite o encargo do pagamento exorbitante exigido pela Novartis por um medicamento ainda incompletamente testado. Elogiamos e compreendemos os imperativos éticos desta conduta, mas devemos perguntar-nos se não existiriam alternativas. E, paradoxalmente, a resposta é sim.
Como sempre, os portugueses responderam generosamente à chamada e existem dois milhões de euros depositados numa conta solidária. Porque é que não foram utilizados? Tal como o foram os donativos orientados para a construção das casas de Pedrógão. Tal como o são as dádivas em dinheiro e géneros para o Banco Alimentar. Claro que a condução do processo e a avaliação da adequação da utilização duma droga nova, ainda não autorizada na Europa, teria de ser feita por médicos do SNS e a autorização da sua utilização pelo Infarmed, após avaliação da sua eficácia e riscos. Porém, o seu pagamento pelo SNS não me parece obrigatório. Primeiro, por respeito para com os dadores que pretendiam que o dinheiro fosse utilizado para o fim solicitado e, principalmente, porque o dinheiro gasto poderia ser poupado, e fará falta ao apoio a outros doentes.
Teremos de nos questionar se a obscena quantia solicitada pela Novartis tem razão de ser. Os elevadíssimos gastos realizados na investigação prévia e futura e na produção do medicamento são o principal argumento da farmacêutica. Contudo, a Novartis necessita tanto da Matilde e da Natália como a Matilde e a Natália necessitam deste apoio terapêutico. Porque, para esta empresa, é vital comprovar a fiabilidade do Zolgensma para ser aceite noutros países e, para tal, tem de, rapidamente, testar um maior número de doentes e confirmar a fiabilidade e a segurança da droga. Nomeadamente, a eficácia clínica a curto e longo prazo e os efeitos secundários. E, é de salientar, no referente aos enfatizados prejuízos, que esta empresa não vende apenas este medicamento. O muito elevado lucro que obtém com os restantes medicamentos, em Portugal e noutros países, dá-lhe um excedente para a investigação dos que ainda se encontram em fase experimental. Também o know-how obtido na investigação das doenças raras lhe dará importantes extrapolações para a conduta de futuras investigações em doenças comuns mais lucrativas.
Em conclusão, esta posição de pagamento “à la carte” de novíssimas terapias, que nós só conhecemos através do público “caso Matilde”, não poderá ser mantida pelo nosso SNS, dado o previsível crescente aparecimento dum número muito superior de doenças e doentes tratáveis.
A colaboração da sociedade civil, numa moderna perspectiva de ética colectiva de solidariedade e cidadania, tal como noutros países, e ao contrário das nossas tradições, deverá ser estimulada e nunca recusada.
É também urgente a prévia regulamentação e uniformização dos preços destas drogas através de organismos europeus competentes, após rigorosa análise dos custos. Até lá, o bom exemplo da estratégia musculada de Paulo Macedo no pagamento da terapia da Hepatite C, ao avaliar custos-benefícios, também deverá ser considerada.