José Lima, o coleccionador impulsivo
Industrial do sector do calçado, é proprietário de uma das maiores colecções privadas de arte contemporânea no país. São mais de mil obras reunidas ao longo de três décadas de paixão pelas artes, e que podem ser admiradas no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira. E também, a partir de agora, no Palácio de São Bento.
Quinta-feira. Não é o dia que José Lima preferiria para a inauguração da exposição com as suas obras no Palácio de São Bento, mas não havia como não satisfazer o repto e o pedido de António Costa. “É um dia de semana, de trabalho, mas há valores de Estado que são diferentes dos nossos, além de que, como coleccionador, [mostrar a sua colecção na residência do primeiro-ministro] é a cereja no topo do bolo! — fica-se muito satisfeito.”
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Quinta-feira. Não é o dia que José Lima preferiria para a inauguração da exposição com as suas obras no Palácio de São Bento, mas não havia como não satisfazer o repto e o pedido de António Costa. “É um dia de semana, de trabalho, mas há valores de Estado que são diferentes dos nossos, além de que, como coleccionador, [mostrar a sua colecção na residência do primeiro-ministro] é a cereja no topo do bolo! — fica-se muito satisfeito.”
José Lima descrevia assim ao PÚBLICO o seu estado de espírito nas vésperas de se transformar no terceiro “inquilino” do programa Arte em São Bento, com que António Costa decidiu transformar a sua residência oficial também numa galeria de arte contemporânea portuguesa. Depois de Serralves e da Colecção António Cachola, nos anos anteriores, o convite recaiu desta vez sobre a colecção deste industrial do calçado de São João da Madeira, um autodidacta amante de arte que, ao longo de três décadas, constituiu uma das maiores colecções privadas de arte contemporânea no país.
“Dizem que a minha colecção é muito ecléctica, e também que ela é muito razoável”, nota José Lima, 79 anos, naturalmente agradado por este reconhecimento público quanto ao resultado de uma paixão que no início da década de 1980 decidiu acrescentar ao seu dia-a-dia profissional. “Sou sapateiro; trabalho nos sapatos desde os meus 11 anos”, lembrou, em 2013, quando da inauguração de Traço Descontínuo, a primeira exposição do seu acervo no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, instituição de resto constituída a partir da Colecção Norlinda [nome da sua mulher] e José Lima, e também da Treger/Saint Silvestre, esta mais centrada na arte bruta europeia.
José Lima — socialista com cartão de militante, “mas não muito activo”, tendo sempre “privilegiado a actividade profissional”, reconhece — decidiu ceder a sua colecção, em regime de comodato, num prazo que terminará em 2021 (mas cujo prolongamento está no horizonte), na instituição criada por iniciativa do então autarca social-democrata Manuel Castro Almeida. “De início, eu disse que não, mas ele andou em volta de mim durante muito tempo, foi muito resiliente, e eu acedi; e a verdade é que, mesmo sendo ‘inimigos políticos’, fizemos aqui uma obra muito boa”, realça, referindo-se à transformação da antiga fundição e fábrica metalúrgica num polivalente centro de artes e de criatividade.
Álvaro Lapa a começar
É no Centro de Arte Oliva que José Lima tem depositadas as mais de um milhar de obras de pintura, escultura, fotografia, instalação, vídeo, ilustração representando nomes maiores da arte contemporânea, tanto portuguesa como internacional. Alguns nomes: Maria Helena Vieira da Silva, Cruzeiro Seixas, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Álvaro Lapa, Júlio Pomar, Joana Vasconcelos, Eduardo Batarda, André Cepeda, Albuquerque Mendes, Júlia Ventura, João Louro, do lado dos portugueses; Andy Warhol, Christo, Damien Hirst, Victor Vasarely, António Saura, Miquel Barceló, Jan Voss, Cindy Sherman, Serge Poliakoff, Malangatana ou Patrick Bongoy, a sua aquisição mais recente, dos estrangeiros.
À questão que mais vezes lhe tem sido colocada pelos jornalistas — “Qual foi o primeiro quadro que comprou?” —, José Lima diz que já não sabe responder com precisão. “Na altura, acho que comprei três obras, uma do Álvaro Lapa e as duas outras já não me lembro de quem”, responde, enfatizando que, nesses inícios dos anos 80, “não pensava em ser coleccionador”.
É verdade que o interesse pela arte vinha já de trás, sem nenhuma explicação plausível. Nascido em 1940, em Águeda, o segundo de cinco irmãos e filho de um fabricante de calçado, José Correia de Lima teve de abandonar a escola muito cedo para assegurar a sobrevivência nesses anos difíceis do pós-Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, já instalado como um bem-sucedido fabricante de sapatos (é proprietário da marca Storm, quase exclusivamente para exportação, e que actualmente emprega perto de 80 trabalhadores), teve condições para desenvolver esse seu hobby pela arte, lendo, estudando e sobretudo aproveitando as viagens profissionais para visitar museus, galerias, exposições. “Quando vou às feiras internacionais de calçado, arranjo sempre meio dia para ir aos museus; conheço praticamente os museus todos da Europa: o Pompidou, a Tate, o Rainha Sofia, e muitos em Itália”, nota. Mas revela que o seu museu preferido é o Louisiana, a norte de Copenhaga, na Dinamarca. “É um museu belíssimo em todos os aspectos, com obras fabulosas, que me entusiasmou; quando lá fui a primeira vez, pensava ficar duas horas; fiquei dois dias!...”
José Lima lamenta, de resto, que em Portugal não exista um verdadeiro “museu nacional de arte contemporânea”, que permita uma visão de conjunto do que foi a criação artística ao longo do século XX. “Tivemos um bocadinho disso com o Museu do Chiado, mas que infelizmente desapareceu; também tínhamos o da Gulbenkian, mas que hoje já não acompanha a história; e Serralves é um grande museu, mas não é o museu português da arte contemporânea”, descreve, apontando como modelo para essa instituição o Rainha Sofia, em Madrid, que visita repetidamente para ficar horas e horas à frente da Guernica de Picasso.
“A arte é sobretudo emoção, um estado de alma”, diz, para explicar o que o liga a uma obra, e o que o leva a tentar adquiri-la. Esse “impulso” que fez com que, perante o quadro Chien en bas d’une table avec lapin (1984), do espanhol Miquel Barceló, tivesse quebrado a sua regra estrita de só comprar aquilo que no momento está dentro das suas possibilidades financeiras. Viu o quadro na Arco, em Madrid, e ficou de tal modo emocionado que decidiu contrair um empréstimo ao banco para adquirir esse Barceló. “A gente quase troca a família pela colecção”, diz agora ao PÚBLICO. “O gosto abunda, mas os valores materiais nem tanto, e às vezes a gente sacrifica aquilo que pode e deve a nível da família para ter o quadro que lhe falta.” Porque “o coleccionador nunca tem a colecção que quer, tem a que pode”.
A avaliar pela mostra que a partir desta quinta-feira se poderá visitar — todos os domingos, das 10h00 às 17h00, até final do ano — no Palácio de São Bento, e pelas apreciações feitas ao acervo do Centro de Arte Oliva, a Colecção Norlinda e José Lima responde bem a essa paixão (des)interessada pela arte.
Notícia corrigida: a Colecção Norlinda e José Lima está depositada no Centro de Arte Oliva, e não na Oliva Creative Factory.