“We shall never surrender”?
A ambiguidade persistente do Labour e do seu líder faz com que a convocação de eleições possa não resultar numa clarificação política que permita aos eleitores uma escolha fácil.
1. Não importa quem perde mais ou quem perde menos, neste braço-de-ferro final entre o Reino Unido e a União Europeia. A soma das perdas será sempre imensa, alimentando-se mutuamente. O problema maior é que a saída britânica se aproxima rapidamente do seu momento de não-retorno, sem que se vejam sinais de uma clarificação política do rumo que os acontecimentos podem tomar.
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1. Não importa quem perde mais ou quem perde menos, neste braço-de-ferro final entre o Reino Unido e a União Europeia. A soma das perdas será sempre imensa, alimentando-se mutuamente. O problema maior é que a saída britânica se aproxima rapidamente do seu momento de não-retorno, sem que se vejam sinais de uma clarificação política do rumo que os acontecimentos podem tomar.
Em Londres, o novo primeiro-ministro Boris Johnson conduz uma “cavalgada” política em direcção à data de saída, fixada para dia 31 de Outubro, cujo desfecho ainda não está garantido. Apostou tudo em retirar ao Parlamento britânico qualquer possibilidade de interferir nesta “cavalgada”. Fracassou, mas ainda não perdeu a última batalha. Com 21 deputados da bancada conservadora, entre os quais alguns pesos-pesados como Philip Hammond ou Kennet Clark, a votarem a favor de uma lei cujo objectivo é travar um “Brexit” sem acordo, lado a lado com os trabalhistas, liberais-democratas e nacionalistas escoceses, o primeiro-ministro foi estrondosamente derrotado em Westminster, precisamente no dia da sua estreia parlamentar.
O que fará agora para retomar a sua estratégia de tensão máxima e de fuga para a frente? Eleições? É a única arma que lhe resta para cumprir o seu objectivo e manter o seu lugar em Downing Street pelo tempo suficiente para ficar na História. Mesmo que o regime político britânico atribua ao primeiro-ministro vastos poderes em matéria de dissolução do Parlamento, desta vez tem de contar com uma limitação recente (2011), que obriga à aprovação da dissolução por dois terços dos Comuns. Será precisa a “cumplicidade” do líder do Labour, Jeremy Corbyn, para que seja aprovada a proposta de dissolução no calendário que mais convém a Boris, ou seja, o mais depressa possível e, sobretudo, antes da cimeira europeia de 17 e 18 de Outubro, que será o momento decisivo para saber em que condições o Reino Unido sairá da União.
2. A pergunta que se segue é, pois, o que faz correr verdadeiramente o líder trabalhista? A resposta também não é fácil, na medida em que Corbyn tem jogado na constante ambiguidade em relação ao “Brexit”. Esta quarta-feira, no Parlamento britânico, ainda não era clara a posição que o Labour tenciona assumir em relação à data das eleições: aceitar que sejam já em meados de Outubro ou, pelo contrário, não fazer o jogo do primeiro-ministro, comprometendo-o com um calendário que impeça qualquer saída sem acordo.
É esta ambiguidade persistente do Labour e do seu líder que faz com que a convocação de eleições possa não resultar numa clarificação política que permita aos eleitores uma escolha fácil. Corbyn gostaria de ver o Reino Unido fora da União Europeia, mas não pode transformar a sua vontade em política oficial do partido cujos militantes e eleitores são maioritariamente pró-europeus. Se houver eleições, o Labour defenderá o “Remain” ou apenas um “Brexit” com um novo acordo, negociado teoricamente por um novo governo? A palavra de ordem para a batalha eleitoral já está definida: “Stop no deal and win a Labour government.” Ficar já não é, portanto, uma alternativa, mas vencer as eleições está muito longe de ser uma certeza.
As sondagens mais recentes apontam para uma nova vitória dos Conservadores e para um resultado do Labour bastante aquém de qualquer possibilidade de vir a governar, mesmo em aliança com os democratas-liberais, que têm visto a sua defesa sem ambiguidades do “Remain” ser compensada com a crescente simpatia dos eleitores. Mas, tal como Johnson, a Corbyn também não restam muitas alternativas a não ser uma fuga para a frente, que mobilize e unifique o seu partido em torno de uma nova agenda política que permita diluir a questão do “Brexit”, que divide profundamente o eleitorado de esquerda.
3. Johnson pode conseguir uma maioria absoluta? As sondagens dão-lhe uma remota possibilidade. Tentará colocar o eleitorado britânico perante uma escolha simples: “Entre ele próprio e a possibilidade real de uma saída sem acordo, e a agenda de esquerda radical de Jeremy Corbyn”, sintetiza Robert Shrimsley na sua coluna do Financial Times. “Será uma escolha difícil para uma maioria do eleitorado de centro.”
Se for assim, o primeiro-ministro poderá contar com uma nova bancada em Westminster, devidamente depurada dos deputados que agora lhe fizeram frente e revogar facilmente a lei que o obriga a aceitar um eventual protelamento da saída para que possa haver um acordo. Sem surpresa, Johnson quer convencer os britânicos de que estão a travar a sua nova “batalha pela Inglaterra”, vestindo as vestes de um verdadeiro discípulo de Churchill a desafiar sozinho o “monstro” de Bruxelas. Esta quarta-feira, no Parlamento, na sua primeira sessão de perguntas ao Governo, classificou a lei para travar o “Brexit” sem acordo de “lei da rendição”, apresentando-se como aquele que nunca se renderá.
Fica uma dúvida. Mesmo podendo contar com o apoio da imprensa tablóide que gosta dos grandes títulos contra Bruxelas, não é certo que Johnson consiga convencer os britânicos de que Michel Barnier, o negociador chefe da União Europeia, ou a futura presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, têm alguma coisa de comum com Hitler, ou que Angela Merkel seja uma ameaça às ilhas britânicas. Por mais confusa, descrente e cansada que esteja hoje a opinião publica britânica, perante os resultados de um referendo realizado já lá vão mais de três anos, não é garantido que esta táctica seja suficiente para levar os conservadores de Johnson a uma vitória retumbante em eventuais eleições. Mas ela também é a medida exacta da crise de identidade em que mergulhou o Reino Unido, no momento em que está confrontado com a decisão provavelmente mais importante para o seu futuro desde o fim da II Guerra.
4. Finalmente, como estão a reagir os 27 parceiros europeus perante esta escalada? Não é que Bruxelas tenha grande margem de manobra para alterar o seu mandato inicial, sobretudo quando a questão da fronteira irlandesa – o chamado backstop – não parece ter uma solução fácil. Mas Bruxelas também sabe reconhecer uma chantagem e convém-lhe ter maleabilidade suficiente para esvaziá-la. O tom já mudou. Do imobilismo inicial – o acordo de saída não é negociável – passou a uma atitude mais conciliadora, aberta às propostas que o Governo britânico lhe quiser apresentar.
Os governos europeus também têm pela frente um dilema: apresentar a Londres uma nova proposta de adiamento, indo ao encontro da data proposta pela nova lei de Westminster – dia 31 de Janeiro; ou entrar no jogo de radicalização de Boris Johnson e “render-se” a uma saída sem acordo, preparando o melhor possível as suas economias para um inevitável impacto muito negativo. Algumas nuvens negras que se adensam sobre a economia europeia, com a Alemanha próximo da recessão técnica, farão, provavelmente, os governos europeus pensar duas vezes.