Mafra recupera gestão pública da água ao fim de 25 anos
Associação do sector estranhou decisão do município, mas este preferiu pagar 21 milhões para resgatar a concessão seis anos antes do prazo previsto.
Quando os mafrenses abriram a torneira neste domingo talvez não tenham notado grande diferença, mas a água que correu foi, pela primeira vez em 25 anos, fornecida pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneameno (SMAS). Terminou à meia-noite de 31 de Agosto o contrato de concessão entre a câmara de Mafra e a empresa Be Water, que até aqui geria as redes de água e saneamento daquele concelho.
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Quando os mafrenses abriram a torneira neste domingo talvez não tenham notado grande diferença, mas a água que correu foi, pela primeira vez em 25 anos, fornecida pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneameno (SMAS). Terminou à meia-noite de 31 de Agosto o contrato de concessão entre a câmara de Mafra e a empresa Be Water, que até aqui geria as redes de água e saneamento daquele concelho.
O município foi o primeiro do país a concessionar a privados o fornecimento de água e agora tornou-se também o primeiro a resgatar a concessão, trazendo o serviço de novo para a esfera pública. “Não tem nada a ver com questões de ideologia”, explica Hélder Silva, presidente da câmara. A autarquia era PSD em 1994 e continua a sê-lo hoje. O que alavancou a decisão foi a recente crise económica, afirma o autarca.
“Em 2009 fez-se um aditamento ao contrato de concessão e foram revistos os montantes anuais de consumo de água.” Se houvesse um desvio de 15% em relação a esses valores definidos, para cima ou para baixo, “havia direito a reequilíbrio económico-financeiro”. Hélder Silva diz que “os consumos baixaram 23%” durante o período mais crítico da crise e, por isso, a Be Water pediu o reequilíbrio.
Nos termos do contrato isso significaria uma despesa para os cofres municipais entre os 12 e os 16 milhões de euros e uma subida de 30% nas tarifas pagas pelos consumidores, diz o presidente da câmara. “Esses 30% eram valores incomportáveis para os mafrenses”, comenta Hélder Silva.
E assim se iniciou o processo de resgate da concessão, que demorou “cerca de dois anos e meio” e só ficou concluído quando um tribunal arbitral fixou em 21 milhões de euros (mais IVA, a rondar os quatro milhões) o valor da indemnização a pagar pelo município à Be Water.
Nenhum responsável desta empresa esteve disponível para falar com o PÚBLICO em virtude de ser período de férias.
Já a Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente (AEPSA), que representa as concessionárias de água e saneamento, estranha a opção. “Não posso deixar de manifestar a nossa estranheza e incompreensão, já que nunca foi referido pelo município qualquer problema de qualidade de serviço por parte da concessionária – antes pelo contrário, são conhecidas diversas menções muito elogiosas à prestação do serviço”, afirma Eduardo Marques, presidente desta associação.
Reequilíbrio é desejável, diz o sector
“Os processos de reequilíbrio económico-financeiro são normais e desejáveis”, diz o dirigente da AEPSA, que não vê motivos para que tal justifique a decisão mafrense. “O regulador recomenda reequilíbrios a cada cinco anos, porém a média temporal verificada nos contratos de concessão é superior, sendo cerca de seis anos”, acrescenta.
O contrato de concessão de Mafra só terminaria daqui a seis anos e, para pagar a indemnização à Be Water, o município teve de contrair um empréstimo bancário de 22 milhões de euros. Esse é outro motivo que leva Eduardo Marques a “achar estranho” o resgate.
Hélder Silva reconhece que a concessão a privados foi benéfica em 1994 porque “a câmara não tinha meios financeiros” para os investimentos necessários. “Passámos de coberturas relativamente baixas para uma cobertura de 100% do concelho na água e 85% no saneamento”, diz o autarca. “Mas nos últimos anos sentíamos que a concessionária não introduzia inovação nenhuma e que se limitava a explorar a concessão”, acusa.
Dos 21 milhões que a autarquia desembolsou pelo resgate, 14 milhões serviram para pagar investimentos feitos pela Be Water na rede de saneamento, nas condutas em alta e na sua sede social. Os outros sete milhões foram entregues como compensação pelas receitas que a empresa deixa de receber nos próximos seis anos e pelo reequilíbrio económico-financeiro previsto contratualmente.
“Barreiras demagógicas”
Em Portugal há actualmente 33 concessões de água e saneamento a empresas privadas, abrangendo perto de 20% da população. Mafra foi a primeira câmara a percorrer até ao fim o caminho da re-municipalização. Outras negociaram os contratos e Barcelos, por exemplo, recuperou a posse de uma parte da empresa que presta o serviço. “Espero que possamos vir a fazer jurisprudência para situações vindouras”, declara Hélder Silva.
Eduardo Marques acredita, no entanto, que a tendência é de aumento do número de concessões. “Há diversas autarquias a ponderar o lançamento de concursos de concessão, já que é conhecido e inequívoco que o sector tem contribuído de forma inquestionável para a consubstanciação de uma gestão profissional, atingindo níveis de desempenho de excelência nas diferentes vertentes”, diz.
O presidente da AEPSA refere que as concessionárias já investiram, “sem fundos comunitários”, 1200 milhões de euros nas redes de água e saneamento. E cita as avaliações positivas da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) para concluir que a gestão concessionada “tem melhor performance na generalidade dos indicadores de desempenho, o que corresponde a uma melhor qualidade de serviço aos utilizadores”.
“Para o bem do país e dos utilizadores finais terão de ser fomentadas medidas que propiciem o lançamento de novos concursos de concessão dos serviços de água. Para isso será necessário quebrar algumas barreiras demagógicas e até ideológicas e estabelecer uma comunicação séria e sustentada”, defende Eduardo Marques. “As empresas privadas concessionárias estão interessadas e disponíveis para investir aquilo que o sector precisa, logo que sejam criadas condições de estabilidade e previsibilidade legislativa e regulatória, que garantam a confiança dos investidores e das entidades financiadoras.”
Em Mafra o resgate da concessão foi politicamente pacífico, mas logisticamente complicado. “Andámos um bocadinho às apalpadelas”, admite Hélder Silva, referindo que a lei dificulta mais o resgate do que a concessão. Os cerca de 100 trabalhadores afectos à empresa transitam para os novos SMAS, recriados ao fim de duas décadas e meia de inactividade, e “a prioridade é investir bastante na renovação das redes e em tecnologia”, diz o presidente. O autarca espera que “a transição não traga qualquer perturbação para os clientes” e, apesar de tudo, deixa elogios à Be Water: “Disponibilizou-se totalmente para uma correcta passagem do serviço.”