Mutilação genital: Décadas de denúncia e uma nova geração de activistas
Em Portugal, o tema entrou na agenda política apenas em 2002.
A gambiana Jaha Dukureh, que aos 30 anos é uma das galardoadas com o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa, é um dos rostos da nova geração de activistas que combatem práticas tradicionais nefastas, uma mobilização que ganhou novo fôlego na última década. Em Junho deste ano, Dukureh conseguiu convencer imãs islâmicos — incluindo um representante do grande imã de Al Aazhar, uma das mais prestigiadas instituições do islão sunita — a emitir uma fatwa contra o casamento infantil, uma decisão com grande peso no mundo islâmico.
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A gambiana Jaha Dukureh, que aos 30 anos é uma das galardoadas com o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa, é um dos rostos da nova geração de activistas que combatem práticas tradicionais nefastas, uma mobilização que ganhou novo fôlego na última década. Em Junho deste ano, Dukureh conseguiu convencer imãs islâmicos — incluindo um representante do grande imã de Al Aazhar, uma das mais prestigiadas instituições do islão sunita — a emitir uma fatwa contra o casamento infantil, uma decisão com grande peso no mundo islâmico.
No mesmo mês, as britânicas de origem somali Leyla Hussein e Nimco Ali, fundadoras da ONG Filhas de Eva, em 2010, receberam o título de oficiais da Ordem do Império Britânico. Nos últimos anos, têm contribuído para esclarecer muitos dos mal entendidos sobre a Mutilação Genital Feminina (MGF), enfatizando que deveria ser encarada não como uma prática cultural, mas como abuso de menores, e contribuíram com uma petição entregue, em 2014, para pressionar o Governo britânico a adoptar políticas de prevenção nas escolas e serviços de saúde e de protecção e apoio a mulheres e meninas que sofreram o corte. A Somália é país natal também de jovens como Ifrah Ahmed, que foi levada para a Irlanda em 2006, quando tinha 17 anos. Hoje, aos 32, é um dos rostos desta luta.
Mas também nos países de origem, nas comunidades tradicionais, a mudança tem acontecido. Jovens como Jaha Dukureh ou Nice Leng’ete, que aos 28 anos já ajudou mais de 15 mil raparigas a evitar o ritual de corte no Quénia, têm dado a cara — muitas vezes tendo de fazer frente aos líderes religiosos — e continuado um combate global que acontece há décadas.
Na obra Feminismos: percursos e desafios, Manuela Tavares relata que as mulheres africanas começaram a insurgir-se contra esta prática desde a década de 1920. Na Somália, onde se estima que 98% das mulheres em idade fértil (entre os 15 e os 49 anos) tenham sido submetidas à MGF, as primeiras campanhas públicas contra a prática datam da década de 1970.
No Egipto, onde 91% das mulheres em idade fértil é sobrevivente de mutilação genital — praticada tanto por muçulmanos como por cristãos —, uma das pioneiras deste activismo foi a médica e escritora Nawal El Saadawi. A primeira mulher candidata à presidência do país (em 2005), a quem chamam “Simone de Beauvoir do Egipto”, lançava críticas à MGF já em 1972, no seu livro Mulheres e Sexo, que a fez perder o emprego no Ministério da Saúde egípcio. A crítica à condição das mulheres no Islão é uma constante na sua obra, incluindo o tabu do corte: chegou a relatar o ritual a que foi submetida aos seis anos, assim como a forma como escapou a um casamento forçado quando tinha apenas dez anos.
Também as organizações internacionais tiveram um papel importante no combate a esta prática. Em 1979, a Organização Mundial de Saúde (OMS) proclamava a primeira condenação oficial da mutilação genital feminina. Em 1990, a recomendação n.º 14 do Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), sobre “circuncisão feminina”, instava os Estados a tomar medidas “apropriadas e eficazes” para erradicar a prática. Em 1994, no programa de acção que resultou da Conferência das Nações Unidas sobre População, no Cairo, sublinhava-se que era preciso adoptar “fortes programas comunitários de sensibilização envolvendo comunidades e líderes religiosos”.
A mudança tinha de partir de dentro das comunidades, alertavam as activistas. A Associação de Mulheres Africanas para a Investigação e Desenvolvimento, fundada no Senegal, publicava já em 1980 uma declaração sobre mutilação genital onde faz uma firme condenação à prática mas também critica as abordagens simplistas, sensacionalistas e paternalistas do tema, em particular por parte de países ocidentais — “esta nova cruzada do Ocidente”. No documento, defendem que “nenhuma mudança é possível sem a participação deliberada das mulheres africanas”, incentivando mulheres e governos destes países a agir contra a prática.
Se o combate à MGF era claramente urgente nos países onde é praticada e historicamente silenciada (predominantemente no continente africano e em alguns países da Ásia, como a Indonésia, e do Médio Oriente), é através de histórias pessoais que o resto do mundo tem acordado para o fenómeno, seja pela peça Monólogos da Vagina, onde Eve Ensler incluía apontamentos — “Vagina: facto” — sobre mutilação genital entre as experiências de mulheres de várias partes do mundo, até à grande pedrada no charco da agenda mediática global quando, em 1998, a modelo somali Waris Dirie lança o livro Flor do Deserto, onde relata o ritual a que sobreviveu aos cinco anos e a fuga, aos 13, da aldeia onde vivia com a família, ao saber que seria forçada a casar-se com um homem muito mais velho.
“Até quando se irá ignorar?”
Tal como tem revelado o trabalho de activistas na diáspora, trata-se de uma prática que afecta populações em países de todo o mundo. O Parlamento Europeu estima que meio milhão de mulheres na Europa sejam sobreviventes de MGF, enquanto 180 mil meninas continuam em risco.
Em Portugal, a prática era denunciada desde a década de 1990, mas o tema entrou na agenda política apenas em 2002, com a publicação de um trabalho de investigação da então jornalista do PÚBLICO Sofia Branco que trazia depoimentos de mulheres da comunidade guineense muçulmana em Portugal.
“Até quando se irá ignorar / o que a mutilação está a causar?”, perguntavam em 2010 as rappers do projecto Hip Hop de Batom. A canção sobre o fanado (nome dado ao ritual na Guiné-Bissau), no âmbito do projecto criado para dar voz às raparigas, reflectia as experiências de várias mulheres portuguesas e surgia numa altura em que o combate a esta prática começava, finalmente, a ganhar tracção no plano das políticas públicas. No ano anterior — a 6 de Fevereiro de 2009 —, era publicado o primeiro Programa de Acção para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina, dando impulso para uma série de apoios específicos para projectos de prevenção e combate à prática.
Em 2015, um estudo do Observatório Nacional de Violência e Género estimava que mais de 6500 mulheres com 15 ou mais anos já tenham sido vítimas de mutilação genital, e cerca de 1800 meninas com menos de 15 anos já teriam sido submetidas a esta prática ou estariam em risco de o ser — o que pode acontecer nos países de origem das famílias, para onde são levadas durante as férias, ou mesmo em território português. A MGF tornou-se um crime autónomo em Portugal apenas em 2015, numa alteração legislativa decorrente da aplicação à lei portuguesa do disposto na Convenção de Istambul (que também criou o crime de casamento forçado), mas nunca houve condenações.
Contudo, mais do que punir, a tónica da intervenção tem estado na prevenção de novos casos e no cuidado com as mulheres sobreviventes, que vivem com as consequências físicas e psicológicas desta tradição. As políticas de prevenção têm-se focado na área da saúde, com resultados em particular na Grande Lisboa, havendo muito por fazer no campo da educação. E a mudança, como repetem as activistas no terreno, tem que partir das próprias comunidades afectadas pela prática, em particular as mulheres excisadas, num caminho de envolvimento que ainda é lento.
O trabalho com as comunidades começou através de entidades como a Associação para o Planeamento da Família (APF) e a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), juntando-se outras como a P&D Factor, Corações Com Coroa (liderada por Catarina Furtado, Embaixadora da Boa-vontade do Fundo de População das Nações Unidas), Mulheres Sem Fronteiras e, finalmente, grupos formados pelas comunidades, como a Balodiren e a Morabeza, o movimento Musqueba, a Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde (AJPAS) e a Associação dos Filhos e Amigos de Farim, que recebem pontualmente apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).
No 4.º encontro regional pelo fim da MGF, que teve em lugar em Fevereiro, em Lisboa, sublinhou-se ainda a importância de mobilizar as gerações mais novas, como as jovens ligadas à rede europeia End FGM, a associação de estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa ou alunos de escolas onde os projectos financiados ajudam a desocultar a prática.
Uma das grandes transformações tem acontecido na Guiné-Bissau, país de origem de algumas das comunidades afectadas pela MGF em Portugal, onde activistas como Fatumata Djau Baldé, enquanto presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança (cargo que exerceu até Julho deste ano, quando foi nomeada Ministra da Administração Pública), tem feito uma defesa acérrima dos direitos das mulheres por todo o território.