Jaha Dukureh: “Começar o diálogo é o mais difícil e o mais importante”
Uma das vencedoras deste ano do Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa é a gambiana Jaha Dukureh, que defende que é preciso “quebrar o silêncio cultural” à volta da violência contra as mulheres. Para a activista, permitir que as comunidades liderem o diálogo “é o único caminho para a mudança”.
Aos 25 anos, Jaha Mapenzi Dukureh já agitava o mundo à sua volta. Estávamos em 2014 e Dukureh, nascida na Gâmbia, acabava de convencer o então Presidente norte-americano, Barack Obama, através de uma petição, a encomendar um estudo sobre a prática de mutilação genital feminina (MGF) em mulheres residentes nos EUA. Cumprida a missão, resolveu regressar à sua terra natal, onde contribuiu para a decisão histórica que proibiu a MGF no país, em 2015.
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Aos 25 anos, Jaha Mapenzi Dukureh já agitava o mundo à sua volta. Estávamos em 2014 e Dukureh, nascida na Gâmbia, acabava de convencer o então Presidente norte-americano, Barack Obama, através de uma petição, a encomendar um estudo sobre a prática de mutilação genital feminina (MGF) em mulheres residentes nos EUA. Cumprida a missão, resolveu regressar à sua terra natal, onde contribuiu para a decisão histórica que proibiu a MGF no país, em 2015.
A 13 de Setembro, aos 30 anos, a fundadora da organização Safe Hands For Girls — “queremos que as raparigas sintam que estão sempre em mãos seguras”, afirma ao P2 — recebe o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa, atribuído anualmente a duas pessoas que promovem a solidariedade entre os hemisférios, ao lado de Damien Carême, presidente da Câmara de Grande-Synthe (perto de Calais, no Norte de França). Jaha Dukureh estará em Portugal para receber o prémio do Centro Norte-Sul, numa cerimónia na Assembleia da República. No dia anterior, a activista participará num encontro em Lisboa, organizado pela Associação Mulheres sem Fronteiras e a Associação dos Filhos e Amigos de Farim, onde apresentará os seus projectos e falará sobre as suas experiências, numa conversa moderada pela jornalista Sofia Branco.
Segundo dados das Nações Unidas, estima-se que mais de 200 milhões de mulheres foram submetidas à mutilação genital nos 30 países onde esta é mais prevalecente. A cada ano, mais quatro milhões de raparigas estão em risco, mas a agenda mediática parece muitas vezes indiferente a esta violação dos direitos humanos praticada amiúde em condições que podem levar a consequências graves para a saúde, ou mesmo à morte das meninas.
Jaha Dukureh foi submetida ao corte com apenas uma semana de vida. Só o descobriu aos 15 anos, chegada aos EUA para se casar com um homem muito mais velho, quando a infibulação que lhe tinha quase selado os órgãos genitais teve de ser revertida cirurgicamente. Separou-se do primeiro marido e teve de casar novamente aos 17 anos. “Fui uma noiva-criança por duas vezes”, conta ao P2.
Criou a Safe Hands For Girls em 2013, através da qual fez uma campanha bem-sucedida para promover o conhecimento sobre a prática nos EUA. Em 2015, já com nacionalidade norte-americana, decide voltar à Gâmbia, onde se estima que 74% das mulheres tenham sido submetidas à MGF. Em 2016, surge entre as 100 personalidades do ano para a revista Time. A sua história é contada no documentário Jaha’s Promise, de 2017, co-produzido pelo jornal britânico The Guardian. No ano passado, foi nomeada a primeira embaixadora regional da ONU Mulheres para África, dedicando-se ao combate à MGF e aos casamentos infantis, precoces e forçados, com foco na mobilização de jovens.
A Gâmbia é um pequeno território que atravessa o centro do Senegal a partir do mar. Neste país de tradição islâmica, onde o corpo das mulheres ainda é um tema tabu, Jaha Dukureh viaja por várias aldeias para conversar com grupos de mulheres e visitar escolas para falar sobre MGF, casamentos infantis, a educação das raparigas. Na manhã em que conversa com o P2, por Skype, prepara-se para seguir viagem até uma aldeia onde, em época das chuvas, tem-se juntado a grupos de mulheres nas próprias hortas e jardins comunitários. Nas escolas, os activistas da Safe Hands For Girls falam com rapazes e raparigas sobre o que é a MGF, os equívocos que levam a que ainda seja praticada, as consequências nefastas para a saúde e o desenvolvimento das mulheres. Dois esclarecimentos são importantes: explicar que a prática é ilegal na Gâmbia e que não é obrigatória do ponto de vista religioso.
Nos últimos anos, o activismo alargou-se a outras práticas tradicionais consideradas nefastas. Se uma das primeiras experiências traumáticas de uma menina da sua comunidade é o corte, para Dukureh, a segunda será o casamento infantil combinado pelas famílias, por norma, com homens mais velhos. Uma em cada cinco mulheres em todo o mundo casou-se antes de ter completado 18 anos. E, sublinha a activista, “não se pode combater a MGF sem combater os casamentos infantis”. “Afinal, são ambas formas de violência contra as mulheres”, diz.
Na luta para quebrar mais este tabu, as vitórias começam a surgir: em Junho, teve lugar no Senegal a primeira cimeira africana sobre MGF e casamentos infantis, Africa4Girls, organizada por associações de sobreviventes destas práticas tradicionais. Jaha Dukureh esteve no grupo de activistas que, no último dia do encontro, conseguiu convencer imãs islâmicos — incluindo um representante do grande imã de Al Aazhar, uma das mais prestigiadas instituições do islão sunita — a emitir uma fatwa contra o casamento infantil. Uma decisão com grande peso simbólico que traz mais sustentação para as conversas difíceis com líderes religiosos e, no caso de Dukureh, dentro da própria família, tendo em conta que o pai é um imã influente na sua comunidade.
Como iniciou o seu percurso activista?
Mudei-me para os EUA quanto tinha 15 anos para um casamento arranjado. Depois dessa união falhar, casei-me novamente aos 17 anos. Fui uma noiva-criança por duas vezes. Penso que esse activismo nasce por causa da minha própria personalidade e por saber como é passar por tudo isso.
O que significa o nome da sua organização, Safe Hands For Girls?
Uma das razões pelas quais escolhi o nome é porque as mãos que normalmente fazem o corte não são seguras. Queremos que as raparigas sintam que estão sempre em mãos seguras. Queremos que tenham um espaço na comunidade onde sabem que toda a gente está a cuidar delas, que não estão a usar essas mesmas mãos para cortá-las.
Começou por ser uma voz contra a MGF, mais tarde passou também a falar sobre casamentos infantis. De que forma estas questões estão ligadas?
Quando vim para a Gâmbia trabalhar com as comunidades, percebi que não se pode combater a MGF sem combater os casamentos infantis. Percebi que para acabarmos com estas práticas tradicionais nefastas temos de ir ao fundo, às causas que estão na raiz e que explicam que isso aconteça. Afinal, tem muito que ver com o patriarcado. Para acabar com a MGF, para mim era muito importante combater também os casamentos infantis, já que as mulheres passam pela MGF para estarem preparadas para o casamento. Lentamente, começámos a introduzir os casamentos infantis no nosso trabalho, abordando os temas em conjunto em vez de ter duas coisas separadas. Falamos sobre práticas tradicionais nefastas, porque não são diferentes. No fim de contas, são ambas formas de violência contra as mulheres.
Há quanto tempo uniu as duas causas?
Tenho falado mais publicamente sobre os casamentos infantis nos últimos dois anos. Antes, não era algo sobre o qual me sentia confortável a falar.
E agora?
Ainda não é, mas é necessário. Isto não é sobre estar ou não à vontade. É algo necessário e que tem de ser abordado.
Foi uma adolescente gambiana nos EUA e, mais tarde, uma norte-americana na Gâmbia. Como é que essa experiência moldou o seu percurso?
Ao crescer nos EUA, estive mais exposta. Vivi num ambiente cultural que me ajudou a compreender várias coisas sobre direitos das mulheres e igualdade, liberdade de expressão, todas essas coisas. Tive muita sorte por poder contar com ambas as culturas. Acredito que sou tão gambiana como sou americana, porque cresci nos EUA, fiz a escola lá, muitos dos meus amigos são americanos... Ajudou-me a descobrir quem sou, encontrar a minha voz. Os EUA ajudaram-me a tornar-me quem eu sou, porque foi onde tive oportunidade de ir à escola e todas essas coisas que não penso que teria tido se estivesse a viver na Gâmbia.
Por vezes, os emigrantes são vistos como trazendo bons ventos, mas outras vezes são recebidos como forasteiros. Como foi regressar à Gâmbia?
Penso que há as duas coisas: pessoas que pensam que sou uma enviada do Ocidente, enquanto outras vêem que continuo a fazer parte da nossa cultura, a trazer visibilidade para esta questão porque tive a sorte de comunicar com media ocidentais. É preciso encontrar um equilíbrio. Quando começámos, foi difícil, quando as pessoas não sabiam se estávamos cá para trazer um programa ideológico ocidental. Mas agora penso que estão mais receptivas ao trabalho que fazemos.
E como é que as mulheres reagem? Tem havido mudanças na forma como este discurso é recebido?
Quando começámos a fazer este trabalho na Gâmbia, muitas pessoas insultavam-nos, expulsavam-nos das comunidades. Hoje, conseguimos criar laços com várias comunidades, onde o nosso trabalho é bem-vindo, onde temos parceiros, temos pessoas com quem trabalhamos constantemente e que verdadeiramente se preocupam com o combate à MGF e ao casamento infantil. Não estamos sozinhos. Mais e mais pessoas juntaram-se ao nosso trabalho, e quando vamos às comunidades ficam contentes com a nossa presença, querem aprender. Já não nos pedem para sair.
Essa mudança foi influenciada pela alteração da lei?
Não. Penso que esteve relacionada com o trabalho conjunto que fizemos com outras organizações na Gâmbia.
E o diálogo com os líderes religiosos?
Vivemos em comunidades muito religiosas e as pessoas dão mais atenção aos líderes religiosos do que às leis. Para acabar com a MGF e os casamentos infantis em países onde são vistos como obrigatórios do ponto de vista religioso, é importante trabalhar com os líderes. O que temos visto é que esse trabalho tem aumentado o nível de consciencialização e de envolvimento das comunidades.
Que passos têm sido mais eficazes para promover a mudança?
Em primeiro lugar, é preciso educarmo-nos sobre as sensibilidades culturais e sobre por que é que as coisas acontecem. As pessoas precisam de saber que isto é uma questão cultural e para a combater é preciso começar por nos educarmos a nós mesmos sobre as culturas e por que é que isto acontece, e não atacar quem o faz por ser ignorante. Não é assim que combatemos a MGF.
O que continua por detrás da prática de MGF, apesar de tantos alarmes por todo o mundo?
As pessoas praticam a MGF por diferentes razões em diferentes culturas. Algumas acreditam que tem que ver com “pureza”, outras pensam que é uma obrigação religiosa. Para outras está relacionada com o casamento, ou seja, se não submeterem a sua filha [à prática], ninguém vai casar com ela. Há uma série de equívocos e mitos que levam as pessoas a continuar a prática da MGF. É por isso que grande parte do nosso programa está focado na educação das crianças e das comunidades.
Portugal também tem feito caminho no combate à MGF, já que tem comunidades com origem em países onde é praticada. O que é que funciona neste tipo de trabalho com comunidades na diáspora?
Simplesmente começar o diálogo, sabendo que não é fácil. É importante quebrar o silêncio cultural e incentivar as pessoas mais jovens a falarem mais abertamente sobre estas questões que têm impacto nas suas vidas. Começar o diálogo é o mais difícil e o mais importante. Quando fazemos isso, vemos que não estamos sozinhos e que há pessoas que sentem exactamente o mesmo que nós, que precisam apenas de alguém que fale por elas. Penso que é muito importante apoiar as que decidem falar.
Como podem os Governos ocidentais apoiar as comunidades para combaterem essas práticas?
Os Governos ocidentais precisam de dar apoio às comunidades. Devem incluí-las nas iniciativas que queiram levar a cabo, mas os membros das comunidades devem liderar essas conversas, e não terem outras pessoas a dizerem-lhes o que e como fazer. Temos de permitir que as comunidades liderem o diálogo porque esse é o único caminho para a mudança. Se impuserem ideias sobre estas populações, não vão ser ouvidos, mas se os Governos permitirem às comunidades conduzir essas iniciativas — seja com assistência financeira ou outros apoios para que as concretizem pelos próprios meios —, tornam-se algo que as comunidades vão agarrar. É sobre isso que falamos quando nos referimos a mudanças de atitudes. É importante que as pessoas mudem de atitude por moto próprio, que não sejam forçadas a fazê-lo.
Cada vez mais países têm leis anti-MGF, incluindo a Gâmbia, mas os números da prática continuam preocupantes. Como fazer com que a lei seja aplicada, quando essa eficácia pode ter um impacto demolidor sobre as comunidades?
As leis existem para proteger cidadãos, quer as comunidades gostem, quer não. O papel do Governo e das leis é proteger as crianças e o seu bem-estar. Sabemos que a lei, por si só, não será suficiente para pôr um fim à MGF, a educação também tem um papel importante, mas devemos sempre ter leis como forma de prevenção.
Em que soluções é preciso apostar no que toca às mulheres que foram submetidas à prática?
Apoio psicológico e acesso a serviços de saúde são muito, muito importantes, porque muitas mulheres que foram submetidas à MGF continuam a viver com o trauma. É crucial proporcionar apoio e espaços seguros onde possam falar livremente. Isto é mais complicado em países em desenvolvimento, porque não temos sequer este tipo de estrutura. É importante prevenir a MGF, mas não podemos esquecer as mulheres que já foram submetidas à MGF, dizer-lhes que temos serviços para elas, seja apoio psicológico ou qualquer outro que precisem de forma a poderem cuidar de si mesmas.