Na Flor de Liz de Ovar, que bem desliza o pão-de-ló
Neste espaço com vista para o rio, o convite é para saborear o pão-de-ló durante todo o ano, em diferentes versões além da tradicional, mas sempre húmido e cremoso.
A flor de Liz sempre foi um símbolo associado à monarquia francesa, se bem que já em tempos mais longínquos marcasse presença na heráldica de outras culturas enquanto representação estilizada de lírios com conotação religiosa, mas, por Ovar, o seu significado é diferente: nessa cidade ao lado do mar, “Flor de Liz” é há 30 anos uma das marcas do pão-de-ló húmido típico da gastronomia vareira e, desde finais de 2017, também o nome do salão de chá que os respectivos fabricantes criaram para que o seu doce se pudesse saborear mesmo ali, na hora, junto ao rio Cáster.
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A flor de Liz sempre foi um símbolo associado à monarquia francesa, se bem que já em tempos mais longínquos marcasse presença na heráldica de outras culturas enquanto representação estilizada de lírios com conotação religiosa, mas, por Ovar, o seu significado é diferente: nessa cidade ao lado do mar, “Flor de Liz” é há 30 anos uma das marcas do pão-de-ló húmido típico da gastronomia vareira e, desde finais de 2017, também o nome do salão de chá que os respectivos fabricantes criaram para que o seu doce se pudesse saborear mesmo ali, na hora, junto ao rio Cáster.
A fusão entre o trabalho de bastidores na cozinha e a degustação final num estabelecimento público deu-se quando Fátima Liz – sim, é mesmo esse o seu sobrenome – decidiu acrescentar ao manuseamento de ingredientes e às formas de barro o serviço de mesa numa casa com traça antiga e pátio exterior. Já era habitual que a confecção do seu pão-de-ló com fundo de doce de ovos lhe absorvesse longas horas e a obrigasse a também recrutar os familiares mais próximos em fases de maior procura, mas faltava-lhe o contacto presencial com um público que, longe das feiras gastronómicas, pudesse de forma mais relaxada descobrir ou reencontrar aquela que este ano foi uma das receitas pré-finalistas do concurso “7 Maravilhas Doces de Portugal”.
Quando a Santa Casa da Misericórdia de Ovar disponibilizou para arrendamento o seu edifício da Travessa da Quinta, Fátima rendeu-se à fachada tradicional do imóvel e ao seu pequeno pátio paralelo à margem do Cáster, poucos metros acima da água. Transformado o exterior com relva sintética sob a sombra de reais cameleiras e robustos aloés, o interior estreitou-se para reter o olhar nas iguarias expostas na montra frigorífica e o piso superior fez-se aconchegante com mesinhas envoltas por tons frescos de branco, apontamentos azul-turquesa e janelas de portada em quadrícula para a água límpida. “Achei que o local não podia ser mais excêntrico e adorei-o logo”, conta a doceira e anfitriã.
Depois, foi só definir a oferta da casa: para beber, cafés, chás, apenas alguns sumos e águas, vinho do Porto, cerveja artesanal, licores e espumantes; para comer, brownies de chocolate, trufas, ovos moles, tortas, outras propostas pontuais consoante a inspiração da cozinheira e, claro, uma gama de pães-de-ló dominada pela versão tradicional, servida ainda enformada em papel dentro do barro ou já acomodada em caixas cartonadas para poder deliciar-se em andamento.
Mas a Flor de Liz prima ainda por outras versões de pão-de-ló: o de chocolate, que se faz com uma percentagem mínima de 30% de cacau e combina bem com gelado de limão; o desmanchado, coberto de lascas de amêndoa e servido numa pequena canasta de vime; e o de vinho do Porto, levado ao forno com uma calda de tawny. Todos cumprem os requisitos legalmente exigidos pela Identificação Geográfica Protegida do produto exclusivo de Ovar e todos são fartos no chamado “pito”, que é a designação técnica para um interior húmido cuja fluidez é garantida por grande quantidade de ovos, beneficiando de “verdadeiro açúcar de cana” e da farinha de mais fino grão.
“Dizem que é um doce conventual, mas por Ovar nunca houve conventos nem mosteiros”, comenta César Liz, que, ao casar com Fátima, viu a mãe confiar à esposa os segredos culinários da família e a missão de prosseguir um negócio já com décadas. Mesmo entre os especialistas do clã, contudo, a história do pão-de-ló vareiro não é muito precisa: especula-se que a iguaria tenha tido origem num erro, quando o acaso ditou que a massa fosse retirada do forno antes da sua cozedura completa e se percebeu que isso deixava o bolo muito mais fofo e extremamente cremoso, e conta-se também que a receita poderá ser efectivamente de origem monástica, mas terá sido passada por uma freira beneditina a familiares ou amigos de Ovar, tornando-se aí delícia corrente e afirmando-se como ex-libris da terra no prazo de dois a três séculos.
Dúvidas históricas à parte, para a proprietária da Flor de Liz o que interessa é que “o pão-de-ló de Ovar é uma maravilha única” e que o seu sabor e carisma continuam a fazer correr muita gente. Às vezes os atletas são Fátima e César, que partilham a gestão do espaço com o fabrico de encomendas para revendedores e ainda repartem a agenda com outras funções profissionais e até com ensaios para o Carnaval na escola de samba Costa de Prata; mas, na maioria dos casos, quem mais corre são mesmo os clientes que anseiam por um prazer raro, intenso e indiferente a culpas calóricas. É só perguntar aos turistas australianos e colombianos que tiram férias em Ovar e que, antes de seguirem viagem para outro destino, até com a bagagem atrás vêm despedir-se das últimas colheradas. Se forem vistos a verter uma bebida sobre o pão-de-ló, não é de estranhar: pode ser whisky ou rum, e consta que a combinação só acrescenta ao doce um travo mais maduro e refinado.