À descoberta da verdadeira natureza do Algarve
À boleia do Algarve Nature Fest, pegámos nas crianças e partimos à descoberta de alguns segredos na natureza algarvia.
Ainda o sol não aquece quando chegamos a Fonte Benémola, na zona do barrocal do concelho de Loulé, para um passeio pelos trilhos frescos desta espécie de oásis algarvio, mesmo nos dias mais quentes do Verão — tudo graças à presença de água em abundância, com a ribeira da Fonte de Menalva, que atravessa o local, a ser alimentada por várias nascentes, incluindo a que dá nome ao sítio.
A ideia é fazer um percurso a pé pelo trilho circular e fácil da Fonte Benémola, o que o torna ideal para crianças, observando a riqueza do ecossistema, ajudados pelas indicações de Alexis Morgan que, apesar de ter nascido em Londres, fez do Barrocal há muito o seu lar, conhecendo cada recanto e sabendo como os mostrar. E com uma surpresa a meio — poder participar na anilhagem científica de aves com alguém que conhece os passaritos de cor e salteado.
António Marques tem um café em Faro, mas todos os sábados, logo ao nascer do sol, é na Fonte Benémola que o podemos encontrar. Apaixonado por aves desde que se lembra, o ornitólogo dedica-se há cerca de duas décadas à captura, estudo e anilhagem científica de aves, fornecendo ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas toda a informação para conhecimento científico da avifauna da região e dos percursos migratórios das aves visitantes. É junto ao seu carro, que dispõe de tudo o que precisa para determinar que passarinhos andam por aqui — há os residentes, claro, mas muitos que se encontram apenas de passagem —, que o encontramos já a tratar de verificar se as aves capturadas nas redes, instaladas durante a noite, já ostentam anilhas, por vezes colocadas em distantes pontos do globo, ou se precisam de uma que permite acompanhar o percurso de cada ave.
Assim que chegamos, o ornitólogo convida-nos a sentar junto dele, sob a fresca sombra das árvores, para aprendermos de que forma se elabora o processo de identificação e anilhagem — compreender de que espécie se trata (e, para tal, Marques só precisa de consultar o seu arquivo pessoal de memória, onde constam, parece-nos, todos os nomes comuns e científicos de todas as aves que lhe passam pelas mãos), a idade, o género... Tudo perceptível em alguns sinais que o próprio explica, mas também através do processo de medição da asa e da pesagem. E não há tempo a perder: o calor começa a ser muito e é urgente libertar as aves o mais depressa possível.
Os miúdos mostram-se interessados, mas será depois de serem convidados a agarrar nos passaritos para os libertarem que começarão a revelar-se conquistados. Sobretudo quando surgem, entre o grupo de aves capturadas, dois guarda-rios. Primeiro pela sua forma peculiar, de bico comprido e postura quase vertical. Depois, pelas cores exuberantes, entre verdes, azuis e laranjas. E, por fim, mas não menos importante, pelo seu comportamento único que António Marques faz questão que descubramos por nós próprios.
Pede a uma das crianças que se sente e coloca-lhe no colo um pano e sobre este um dos guarda-rios que, simplesmente, se finge de morto, ficando totalmente inerte, apesar de ninguém o estar a agarrar. O ornitólogo explica que essa é uma das técnicas de sobrevivência desta espécie — afinal, quem irá fazer mal a um bicho que já não mostra sinais de vida sequer? Até que convida o pequeno rapaz a erguer um pouco da ponta do pano. Assim que o guarda-rios sente o movimento do tecido sob o seu corpo, dispara num voo que nem nos dá tempo de pestanejar e que arranca uma gargalhada geral.
Por esta altura, até a adolescente no auge do desinteresse por quase tudo o que existe no mundo já se rendeu, sentando-se mais perto de António Marques e mostrando a curiosidade com uma rajada de perguntas. Já os mais novos andam numa azáfama, entre ir ver se algum pássaro ficou preso nas redes de captura e o pegarem nos mesmos para os soltarem em voo livre. A meio da manhã, já todas as aves foram identificadas, os seus dados registados, as anilhas postas aos que não tinham e estamos prontos para terminar o percurso, agora de regresso à estrada para mais aventuras.
Costela de peixe
Se no interior do Algarve há surpresas, e animais, a descobrir, pelas águas do mar que tanta gente atrai a estas paragens para banhos também nos aguardam momentos divertidos com a empresa Salt & Sea à procura de avistar cetáceos — para quem não sabe, trata-se dos grandes mamíferos que habitam os oceanos e, no caso, pode dar-se a sorte de ver golfinhos, tanto o comum como o roaz, sendo este último mais fácil de encontrar por se aproximar bastante da costa. E, às vezes, há quem tenha o privilégio de ver ao longe uma orca ou uma baleia-anã.
No nosso caso, a sorte abandonou-nos: as mudanças de corrente dos dias anteriores, assim como o forte vento, terão alterado as rotas destes mamíferos e, apesar das muitas tentativas, acabámos por não ver um único. Ainda assim, o tempo não é dado como perdido num passeio de barco que nos obriga a sair da cama muito cedo e a equiparmo-nos com as camisolas e os casacos possíveis (o vento é cortante e assim que nos afastamos um pouco da costa a temperatura parece baixar uns dez graus), mas que nos oferece a amplitude do mar alto e uma visão abrangente da orla marítima que desenha a zona de Olhão e toda a ria Formosa.
Esta não é a primeira vez que saímos para o mar desde que chegámos. A primeira foi em Albufeira para um baptismo de mergulho com a Easydivers. Mas aqui não basta chegar, embarcar e partir — há todo um processo anterior que nos abre, ou não, a possibilidade de conhecer o mundo subaquático. A começar pela teoria, com direito a teste no final para compreender se percebemos todas as regras de trás para a frente. E, neste ponto, o que mais importa é a segurança — tudo o que é feito é sempre com a segurança em primeiro lugar: tanto dos iniciados como dos próprios instrutores. Finda a reunião de sala e já com a avaliação positiva nos testes de toda a gente, o passo seguinte passa por nos equiparmos e seguir para o tanque onde se realizam os testes práticos.
Vestir os fatos de mergulho é sempre um desafio, mas lá conseguimos todos estar apresentáveis ao fim de uns 15 minutos. Maior problema é manter o equilíbrio com o peso da garrafa de ar às costas e, pior, com o cinto de pesos que parece querer atirar-nos ao chão. Claro que tudo isto se torna mais fácil a partir do momento que entramos para dentro de água, mas, nesta fase, individualmente, enquanto os restantes se mantêm do lado de fora a tentar ficar de pé e sem mexer muito.
Na piscina, localizada nos fundos da loja da Easydivers, na Marina de Albufeira, já lá está um instrutor que, após uma breve conversa, encaminha o primeiro para o fundo. De cá de cima, conseguimos observar devido à translucidez da água. O Gonçalo, de dez anos, quase quase onze, consegue nota máxima à primeira: “Tem costela de peixe”, diz o examinador no fim da prova. “Até parece que faz isto desde sempre.” Segue-se o João, da mesmíssima idade, e o resultado é semelhante: consegue o “ok” à primeira. “Quanto mais novos são, mais fácil é”, explicam-nos. Afinal, é com a idade e com a experiência que muitas vezes se ganham os medos. A Margarida, de 14 anos, é a prova disso. Da primeira vez que entrou dentro de água parecia estar dominada por algum nervoso miudinho. Mas, ainda assim, depressa afastou os receios e uma segunda tentativa deu o resultado pretendido.
Com os certificados do baptismo de piscina emitidos, é altura para passar ao baptismo seguinte: no mar, a 12 metros de profundidade. E neste nem tudo correu bem: “Um dos grandes entraves ao mergulho é o não conseguir fazer a descompressão dos ouvidos”, explicam-nos ainda antes. E foi o que acabou por acontecer. Ainda assim, desceram a meio caminho, atingindo os seis metros. Depois disso, os ouvidos não colaboraram. “Pode acontecer a toda a gente”, descansa-nos um dos instrutores que recorda o dia em que aconteceu consigo e, por isso, o baptismo dos visitantes teve de ser cancelado. Ainda assim, nenhum dos três revela frustração. Pelo contrário. O ar de contentamento ao regressar à embarcação mostra bem como a experiência valeu a pena. E o soninho que invadiu o banco de trás do carro logo a seguir também.
Com as mãos na massa
Quando se fala em actividades imagina-se muitas vezes esforço físico. Mas, entre as propostas, há também coisas para fazer que não pressupõem qualquer esforço — apenas alguma gulodice. É o caso de um dos percursos propostos pela Tavira Walking Tours que Filipe Saleiro conseguiu incluir no portefólio da empresa e que passa por entrar na cozinha de uma mulher de mão cheia e aprender os truques da doçaria algarvia. E Leonilde Madeira não é qualquer uma que sabe fazer uns quantos doces: o seu nome constou até da candidatura da Cozinha Mediterrânica a Património Cultural Imaterial da UNESCO, reconhecimento obtido em 2013.
No nosso caso, calhou-nos ser dia de fazer os tão típicos almendrados na sua casa, em Monte Agudo, no concelho de Tavira. E não tardou muito para que os miúdos pusessem o avental e enfiassem as mãos na massa — literalmente. Já depois de lavadas, claro. Que entrar na cozinha da D. Leonilde só é possível depois de muitos mimos aos seus cães que nos recebem entusiasticamente.
A nossa anfitriã acompanha o processo e vai dando as instruções enquanto os visitantes — nós e um casal americano — põem em prática todas as dicas: qual o ponto ideal da amêndoa triturada, qual a dose de açúcar ideal, que tamanho devem ter as bolinhas que se formam com as mãos e que, com o calor do forno, se transformam nos biscoitos achatados que conhecemos.
Todos em colaboração, e sem que as distintas línguas atrapalhem o trabalho de equipa, depressa temos dois tabuleiros prontos a entrar no forno. É quando, por fim, os bolinhos já se encontram a cozer que partimos num passeio pelas redondezas. Afinal, bolos já temos, mas falta o sumo para acompanhar. Nada que não se resolva com uma visita ao laranjal, de onde trazemos as laranjas necessárias para dois jarros de sumo, obtido com o trabalho de todos: assim que regressamos à cozinha da D. Leonilde, é ver toda a gente a agarrar-se a um espremedor que testemunha a riqueza da fruta algarvia.
O fim da actividade é a amêndoa no topo do bolo: um lanchinho na rua, com uma mesa imprópria para quem não gosta de doces.
No fundo da ria
Se no baptismo de mergulho, tanto em piscina como em mar, é necessário saber uma série de técnicas, para o snorkeling basta saber estar quieto. É isso que nos dizem os nossos guias da Passeios Ria Formosa quando vão ao nosso encontro no barco-casa que nos serviu de abrigo durante a noite.
Ainda a bordo do nosso pequeno, mas completo e confortável alojamento, percebemos que a noite roubou a água à ria e que já não sentimos o embalo que nos adormeceu profundamente a todos ainda antes da hora do jantar. O barco está poisado no areal e é possível caminhar por toda a parte, parecendo quase impossível termos ali qualquer hipótese de praticar a actividade agendada: snorkeling.
Mas depressa descobrimos que os nossos medos são infundados. O nível da água começa a, lentamente, ser reposto, com o avanço da maré e os nossos guias já estão a boiar de barriga para baixo. Dizem-nos que há muito para ver; apenas não nos podemos mexer muito para não deixar a água turva... E não nos mentiram.
De óculos e respirador, deixamo-nos deslizar suavemente para as águas baixas da ria que, por esta altura, não terão uma profundidade superior a meio metro. De início, parece-nos não haver nada para ver. Mas eis que o fundo da ria começa a ficar mais nítido, revelando uma série de detalhes únicos, inclusive um cada vez mais raro cavalo-marinho — a ria Formosa já foi tida como um dos maiores habitats desta espécie, mas, nos últimos anos, a degradação ambiental e a pesca ilegal levou a uma diminuição drástica no número de exemplares.
O animal não se mexe — explicam-nos, depois, que não se move sequer para se alimentar, esperando que a comida vá até ele —, não se mostrando incomodado pela nossa presença e deixando-se ficar estático em toda a sua beleza. Como se soubesse que está a ser verdadeiramente admirado e que, por trás das viseiras dos óculos de mergulho, brilham vários pares de olhos. Claro que isto acontece por nós próprios também estarmos praticamente inertes — basta um movimento mais brusco para que, assustados, iniciem a fuga.
Já do lado de fora, outra espécie também ameaçada faz as delícias dos miúdos que conseguem ter dois polvos na mão, com os seus tentáculos enrodilhados nos seus braços. Com cuidado e muita gentileza: porque, explicam, o stress é capaz de levar um polvo à morte.
Não permitimos que tal aconteça e, com todo o cuidado, devolvemos ambas as criaturas ao seu habitat, com a certeza de que, além do prazer que se sente a desenvolver todas estas actividades, há uma coisa que se sobrepõe a todas as outras: saímos daqui, depois destes dias, com ainda mais respeito e admiração pela natureza.