Para sempre no meu coração
O ser humano foi feito para a convivência e a proximidade, e a morte separa, talvez seja por isso que dói tanto. Perder quem amamos obriga-nos a repensar o significado do que foi a nossa vida com aquela pessoa e do que vai ser a partir de agora.
Há dias, alguém me dizia, numa tentativa de consolo: “Mãe é mãe, mas pai é pai!”. Provavelmente, só eu vejo interesse nesta frase, que, aos olhos dos outros, pode parecer risível.
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Há dias, alguém me dizia, numa tentativa de consolo: “Mãe é mãe, mas pai é pai!”. Provavelmente, só eu vejo interesse nesta frase, que, aos olhos dos outros, pode parecer risível.
O ser humano foi feito para a convivência e a proximidade, e a morte separa, talvez seja por isso que dói tanto. Perder quem amamos obriga-nos a repensar o significado do que foi a nossa vida com aquela pessoa e do que vai ser a partir de agora.
O meu pai era sinónimo de alegria e de compaixão, e compaixão é presença; o meu pai era um homem divertido e cheio de vontade de viver. A música era a sua vida: tudo para ele acabava em música, mesmo os momentos de tristeza.
Por ser psicóloga, reconheço que, a partir da teoria, terei de me adaptar e reescrever a minha história, organizar todas as minhas memórias e o futuro sem o meu pai, dando sentido ao que aconteceu. E, por custar tanto, pergunto-me se vou conseguir. Como é possível dar sentido a algo que eu não queria que tivesse acontecido e que me rouba o chão? A ideia de passar por fases específicas e depois chegar a uma aceitação parece simplista aos olhos de quem vê muitas respostas possíveis a um acontecimento tão desolador. Prefiro acreditar que cada um vive a morte de quem ama de uma forma diferente, como uma experiência singular. Sendo certo que há pontos comuns, nem todos encontramos consolo no mesmo ou reagimos de igual modo. Há quem encontre alento recorrendo a rituais religiosos, outros em refúgio. Mesmo em cada um de nós, os momentos da vida também ditam a intensidade da nossa vulnerabilidade à perda: perder alguém hoje pode ser completamente diferente do que seria daqui a cinco anos.
Resta-me a certeza de que a minha relação com o meu pai foi única, porque através da sua alegria e dedicação, que sempre me visou, teceu a minha história. Tenho certamente lembranças diferentes daquelas dos meus irmãos e vivi com ele coisas distintas. Há tempos escrevi sobre o seu carro desportivo que tantas gargalhadas me tirou – “Contornei o carro pela frente sem olhar para os lados. Entrei e senti-me sentada no chão. Tive um certo receio, mas a alegria do meu pai era contagiante e deixei-me levar. Ninguém ficava indiferente à nossa passagem. Acabamos por nos desviarmos do caminho de casa e fomos dar voltas e mais voltas com o ‘possante’, como o meu pai gostava de chamar ao carro.” Este foi mais um dos muitos momentos divertidos que vivi com o meu pai. Como seria bom voltar a esses tempos! Não havia lugar ou situação sobre a qual ele não fizesse graça, nem nos momentos mais sérios. Quando eu ia a entrar na igreja, no dia do meu casamento, sugeriu que eu fugisse – “É agora!” Disse-o com o maior dos sorrisos desafiadores.
As pessoas que amamos influenciam-nos profundamente, fazendo com que as nossas vidas estejam para sempre interligadas. Com a morte sentimos que perdemos o “laço”, como se perdêssemos o sentimento de segurança e o nosso porto seguro. Sentimo-nos à deriva e temos medo. Medo do que vai ser o futuro sem aquela pessoa e até medo da nossa própria morte, porque a morte dos outros mostra-nos o quão vulneráveis somos. Depois vem a culpa. Sentimo-nos culpados pelo que fizemos e muito também, talvez até ainda mais, pelo que não fizemos. Agora já não podemos fazer nada e esta certeza dói ainda mais.
Ecoa em nós, a cada batimento do nosso coração, a pergunta óbvia: por que é que a morte de alguém dói tanto? Tão simplesmente porque a tristeza é a forma que o amor assume quando alguém que nós amamos morre. O pesar e o amor estão profundamente ligados. Sofremos porque amamos e, assim, o luto transforma-se em amor. Quem nunca teve vontade de arrancar esta dor, fazendo-a desaparecer do peito? Mas a certeza dessa impossibilidade leva-me a decidir acolhê-la e esperar, não sabendo quanto tempo, que essa imensa dor se torne singelamente em doce saudade. Estejamos certos, porém, de que mesmo doendo menos, não deixará de doer. Vai ser simplesmente diferente a cada dia porque eu também serei outra pessoa, às vezes mais forte, às vezes menos.
Por agora, espero o tempo da transformação que vai permitir-me refazer o laço e criar um novo espaço na minha memória para nós, em que o maior consolo é a certeza de que o meu pai sabia o quanto eu o amava e, por isso, quero com esta crónica honrar o espaço que ocupou e vai continuar a ocupar na minha vida. Até lá, quero continuar a ser tocada no coração quando penso no meu pai e deixar-me chorar se quiser.