A política feita às fatias
Nesta nova forma de ler o mundo, o voto dos cidadãos não serve para dar forma a uma ideia de país (ou do Mundo), mas para eleger deputados em função da sua cor – ou do seu género, ou da sua orientação sexual.
O título de capa do jornal i para a entrevista com a cabeça de lista do Livre a Lisboa (Os eleitores vão decidir se desejam uma mulher negra no Parlamento) é revelador do desvirtuamento da política promovido pela esquerda que quer brilhar nas guerras culturais. O que essa declaração de Joacine Katar Moreira nos diz é que, nesta nova forma de ler o mundo, o voto dos cidadãos não serve para dar forma a uma ideia de país (ou do mundo), mas para eleger deputados em função da sua cor – ou do seu género, ou da sua orientação sexual. O que nos é proposto é que abdiquemos de uma visão transversal dos problemas e nos detenhamos numa das suas infinitas, embora graves, fatias.
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O título de capa do jornal i para a entrevista com a cabeça de lista do Livre a Lisboa (Os eleitores vão decidir se desejam uma mulher negra no Parlamento) é revelador do desvirtuamento da política promovido pela esquerda que quer brilhar nas guerras culturais. O que essa declaração de Joacine Katar Moreira nos diz é que, nesta nova forma de ler o mundo, o voto dos cidadãos não serve para dar forma a uma ideia de país (ou do mundo), mas para eleger deputados em função da sua cor – ou do seu género, ou da sua orientação sexual. O que nos é proposto é que abdiquemos de uma visão transversal dos problemas e nos detenhamos numa das suas infinitas, embora graves, fatias.
Haver mais deputados negros ou ministros negros seria um sinal inequívoco de progresso da sociedade e da democracia portuguesa – e, já agora, da europeia. Desde que não fossem eleitos ou escolhidos por ser negros, mas por apresentarem percursos de vida, histórias e um pensamento com a riqueza do que Joacine exprimiu na citada entrevista.
Aumentar o peso da questão racial na política é imperativo, quanto mais não seja para garantir que as zonas de exclusão social e de discriminação são analisadas. Mas não se chega lá transformando as eleições num concurso sobre a tolerância racial. Mais do que a cor da pele, o que conta são os programas e nada garante que esses programas sejam mais bem defendidos ou executados com um ou dez deputados negros na assembleia – embora pudesse ajudar. Por muito que custe admitir a uma certa militância das causas raciais, a execração do racismo ou a vergonha pela discriminação e exclusão existem entre os portugueses de todas as cores e condições.
Se o discurso do Livre (ou o do Bloco) teve o mérito de colocar na ordem do dia um problema social que as elites não queriam ver, seria útil normalizar o debate que o explora, fazendo pontes e abatendo barricadas. Ser negro em Portugal não deve suscitar nem comiseração nem estatutos especiais. Nem indiferença. O país ainda está longe de garantir o cumprimento da plena igualdade dos direitos dos negros, infelizmente, e é por isso que se exigem respostas concretas aos seus problemas, o envolvimento de toda a sociedade e, em alguns casos, a acção positiva do Estado. Insistir numa pose de desafio e numa retórica apenas para sublinhar a existência de um racismo larvar entre a maioria dos portugueses pode alimentar a bravata da guerra cultural, mas não serve nenhuma destas ambições.