Espreitar os outros a olhar para nós
Amos Oz conta que talvez a sua vocação de escritor tenha começado quando os pais o levavam para o café e ele tinha de ficar muito calado e bem-comportado, enquanto os adultos conversavam. Punha-se a olhar em volta, para as pessoas, e inventava-lhes uma história.
Tenho uma mania quando ando a pé que é olhar para cima, à procura de sótãos. Não sei bem porquê, mas aqueles cubículos a tocar nas nuvens mexem com a minha imaginação. Como estão no alto e não consigo espreitar lá para dentro, tenho de imaginar. Quão inclinados serão no interior, será que dá para andar de cabeça erguida, terão janelas recortadas nos telhados, será um quarto, um canto de baús e arcas com objectos antigos? As lojas de velharias, as feiras cheias de peças que já foram de alguém, pontuadas por inutilidades, pó e uso, mexem com a imaginação de toda a gente.
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Tenho uma mania quando ando a pé que é olhar para cima, à procura de sótãos. Não sei bem porquê, mas aqueles cubículos a tocar nas nuvens mexem com a minha imaginação. Como estão no alto e não consigo espreitar lá para dentro, tenho de imaginar. Quão inclinados serão no interior, será que dá para andar de cabeça erguida, terão janelas recortadas nos telhados, será um quarto, um canto de baús e arcas com objectos antigos? As lojas de velharias, as feiras cheias de peças que já foram de alguém, pontuadas por inutilidades, pó e uso, mexem com a imaginação de toda a gente.
Os sótãos são um dos meus exercícios de fantasia. Já vivi num e continuo a querer viver num outro qualquer, um dia. Espreitar as casas nas ruas — a fachada impecável de algumas, com toques de postal, as traseiras remendadas de outras, tão reais que parecem cenários, os terraços, as roupas a secar, um mosaico do nosso dia-a-dia — não é verdadeiramente espreitar. Algumas traseiras de prédios — com as escadas de incêndio e com as pessoas a jantarem num andar, a lavarem a louça noutro piso, a ler mais em baixo, a conversar mais acima, a luz acesa aqui, às escuras ali — parecem-me uma peça de teatro. Se no dia seguinte passar por alguma daquelas pessoas na rua, não lhes reconheço a cara. Não estou a espiá-las. Estou a espreitá-las, sim, mas para imaginar o outro. Ou imaginar-me a mim noutro sítio.
É como quando chego a algum lugar novo. Não vale a pena fugir ao pensamento que me vai ocupar: E se vivesse nesta cidade? Como seria? Como seria caminhar pela rua desta aldeia todos os dias? Como seria viver naquela casa? Apanhar aqui o autocarro? O metro à noite, tomar ali o café de manhã, onde estão as livrarias? Estou sempre a roubar aos outros e ao que me rodeia para dar à minha ficção faz-de-conta.
Não sei bem o que move o meu fascínio por sótãos, ou águas-furtadas, mas talvez seja, como escreve Carla Maia de Almeida no livro Onde Moram as Casas, por o sótão ser “o lugar onde sonham as casas. Está perto da lua, das estrelas, dos cometas e das nebulosas. De todas as coisas que nem sequer têm nome, porque ainda ninguém as descobriu”. Este livro explicou-me porque consigo caminhar uma hora a olhar para casas. A imaginá-las por dentro: as divisões, os móveis, os quintais, as pessoas. Ou a inventar-me lá, a habitá-las com as minhas possibilidades.
No outro dia, vi um sótão digno do lápis de um ilustrador. Era torto, tive de inclinar o pescoço. Será que vive lá alguém? Vivia, ele veio à janela e ficou, como eu, parado a olhar para a rua. Ele estava a fazer o exercício ao contrário, a espreitar a rua para ver qualquer coisa que não posso confirmar por ele. A minha avó, por exemplo, adorava estar à janela a ver as pessoas a passarem. Pode ser apenas uma distracção, mas também pode ser imaginação.
A vizinha da frente ainda hoje me pergunta pela minha filha, porque me via, durante a minha licença de maternidade, às voltas com ela ao colo na sala. Viu-me durante meses e eu também via que ela me estava a ver. Era Inverno, a minha filha era muito pequenina, passávamos ali as manhãs e as tardes, as duas de pijama a dar voltas à mesa.
Vemo-nos uns aos outros para nos vermos também a nós próprios. Para imaginarmos o outro e nos imaginarmos lá. No livro Uma História de Amor e Trevas, Amos Oz conta que talvez a sua vocação de escritor tenha começado quando os pais o levavam para o café e ele tinha de ficar muito calado e bem-comportado, enquanto os adultos conversavam. Mergulhado nesse silêncio só dele, punha-se a olhar em volta, para as pessoas, e inventava-lhes uma história: “Ainda continuo a fazer de carteirista. Sobretudo com desconhecidos. E em particular em locais públicos sobrelotados. Na fila do posto médico, por exemplo. Na sala de espera de escritórios, estações de caminho-de-ferro ou aeroportos. Às vezes mesmo a conduzir, nos engarrafamentos, dou uma espreitadela para os ocupantes dos carros vizinhos. Espreito e invento histórias. Invento, espreito e volto a inventar.”