ZigurFest: O imaginário de Adolfo Luxúria Canibal mora num castelo que divide com Krake
Esta empreitada quase cinematográfica entre o vocalista dos Mão Morta e o percussionista foi criada para ser estreada no Castelo de Lamego, no ZigurFest, que encerrou a 9.ª edição no sábado. Quem não viu pode não ter outra oportunidade para o fazer. E é pena.
Há uma imagem em movimento projectada na torre do castelo de Lamego que mais parece um vórtice de entrada para diferentes mundos. Numa espécie de 16:9 que usa como tela o granito da fortificação há apenas imagens de ramos que se movem à vontade do vento. De fundo ouve-se o som de um xilofone que adensa o mistério.
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Há uma imagem em movimento projectada na torre do castelo de Lamego que mais parece um vórtice de entrada para diferentes mundos. Numa espécie de 16:9 que usa como tela o granito da fortificação há apenas imagens de ramos que se movem à vontade do vento. De fundo ouve-se o som de um xilofone que adensa o mistério.
Frente a este cenário há um palco. Lá em cima está Adolfo Luxúria Canibal, atrás de um suporte de partituras, com um microfone apontado na sua direcção. Ao seu lado direito, aos comandos de uma bateria, está Krake, alter-ego de Pedro Oliveira, músico com ligações a Peixe:Avião, Dear Telephone ou OZO. Juntos fazem a banda sonora mais carregada de tons de cinza que o ZigurFest ouviu na edição deste ano. Ao quarto e último dia deste festival que encerrou na madrugada deste domingo o duo apresentou uma peça musical inédita, preparada para ser estreada neste evento feito a pensar na nova música portuguesa. Durante a última semana revelaram-se ali nomes como Afta 3000, Dada Garbeck, Conferência Inferno, Terebentina, Algumacena ou Djumbai Jazz, e confirmaram-se outros como Filipe Sambado, a tocar com os Acompanhantes de Luxo.
Quando a organização do festival anunciou para o cartaz esta parceria entre o baterista e o vocalista dos Mão Morta criámos algumas expectativas. Ao líder da banda rock bracarense reconhece-se a qualidade dos projectos a que se atira. Já o percussionista que recentemente editou The Clifton Bridge Landscapes tinha dado nas vistas na passagem pelo No Noise do ano passado. E foi ainda em 2018 que esta empreitada começou a ganhar forma. Krake já há algum tempo tinha em mente avançar para colaborações com outros músicos e Adoldo Luxúria Canibal foi um dos que se afigurou como nome óbvio. O sítio para a estreia ficou logo definido na edição anterior do ZigurFest, em conversa com a organização, que ao conhecer os planos do músico não hesitou.
Agarrando o som do xilofone que ficou a pairar, voltamos ao palco onde estavam os dois músicos. Essa linha que se ouve é lançada por Krake para servir de base ao primeiro cenário criado por Luxúria Canibal. O vocalista, folhas pousadas no suporte de partituras, parte para a primeira de cinco histórias que levou para este projecto — disse-nos o percussionista mais tarde que o vocalista já as tinha escrito ainda antes de avançarem para esta parceria.
No registo cavernoso que lhe dá identidade, a voz de Adolfo narra a história de “Crespos”, personagem fictícia (ou não) de uma cidade de Braga talvez ainda pré-Revolução dos Cravos. Há “34 anos, seis meses e sete dias” esta figura, a quem cada um pode atribuir a cara que melhor conseguir desenhar na sua mente, tem exactamente a mesma rotina todos os dias. À excepção dos dias em que está fechada, vai à Brasileira religiosamente e é neste café que vê passar “as modas” bracarenses e cogita sobre a conjuntura da época. A personagem não partilha os seus pensamentos com ninguém. Morre ali, na Brasileira, engasgada com tudo o que tinha para dizer e não disse.
Dali partem outras histórias feitas de gente comum, onde cabem dramas de amores ou saudade que acabam em suicídio, assaltos falhados levados a cabo por grupos de antifascistas com pouco rasgo para missões arriscadas, até chegar à vida de “John Silver”, comerciante sem espinha dorsal, capaz de vender o nome, a alma e o país em troca de uns míseros tostões que o capitalismo tem para lhe oferecer.
Uma bateria pode ser uma orquestra
A suportar a palavra está Krake na bateria, que a usa de forma a tirar o maior rendimento do instrumento, arrancando-lhe sons que habitualmente, em géneros musicais mais populares, não se ouvem sair dela. Usa um arco para roubar som aos pratos, em que também toca com a baqueta, não para bater, mas para raspar até chegar ao som mais metálico possível. Recorre ainda a uma kalimba, molas de metal, cordas e outra parafernália para conferir à história a paisagem sonora mais credível e que melhor serve a interpretação de Luxúria Canibal.
Durante cerca de 40 minutos, entram os dois num registo quase cinematográfico, com o vocalista a dar corpo a algumas das personagens, não se limitando à posição de mero narrador. A escrita de Adolfo Luxúria Canibal é meticulosamente feita de pormenores que enriquecem o tema central, mas sem nunca se dispersar. Até chegar ao cerne de toda a narrativa faz um percurso com desvios que desembocam exactamente onde queria chegar. Parte desse jogo de distracção contribui muito para o soco no estômago que são os finais de algumas histórias.
No final de uma actuação arrebatadora não temos dúvidas de que o material que ali foi apresentado não pode morrer no festival de Lamego. A verdade é que não existe qualquer plano para o registar em álbum ou para o levar para outros palcos. Se assim se mantiver, será certamente um desperdício.
No dia de encerramento do ZigurFest ouviu-se e viu-se ainda Daniel Catarino em formato trio a casar a música popular com um rock’n’roll bastante competente, uma Mynda Guevara muito convincente a rappar em crioulo a Cova da Moura e, já de madrugada, os Glockenwise e Chinaskee, que subiu ao palco da Alameda quando já passava das 3h.