Voltar ao Cavia

Os actos medianos que cometemos aos 20 transformam-se, 30 anos depois, em glórias avassaladoras. Não há nada a fazer: as coisas são como são e são (sempre) assim.

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Agora que a Vanessa diz que anda com saudades do primeiro ex-marido começo a ficar um bocado preocupada.

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Agora que a Vanessa diz que anda com saudades do primeiro ex-marido começo a ficar um bocado preocupada.

— A sério, Vanessa. Tu estás bem?

— Estou. Magnífica.

O uso de superlativos não é propriamente um grande indicador de bem-estar. Pode ser sintoma de denegação, ou transferência, ou qualquer outro elemento daquela artilharia da psicologia que domino mal. Mesmo o módico “estou bem” com que respondemos habitualmente à pergunta simpática e sacramental – “como estás?” -  é uma convenção inútil. Com a excepção dos íntimos, por dedicação genuína e alguma obrigação adjudicada, quem é que quer ouvir um discurso sobre o estar péssimo? Aquele que está péssimo e que responde assumindo que está péssimo, assume-se também como um falhado das relações sociais. Temos todos que estar magníficos.

— Vanessa, diz a verdade. Tu não estás magnífica. Eu conheço-te há muito tempo. O que é que se passa?

No pasa nada.

— Continuas a ter saudades do Júlio? Sempre lhe vais telefonar para combinarem um café?

Eu não tinha achado esta ideia brilhante. Por acaso, quando andávamos na Faculdade, a dada altura vivi uns meses no sofá da sala da casa da Vanessa e do Júlio. Lembro-me perfeitamente de discussões por coisa nenhuma, cenas parvas, gritarias dispensáveis — enfim, todo o manancial que torna um casamento nada recomendável. Passado pouco tempo o casamento acabou e, na minha magra opinião de outsider, acabou muito bem.

— Sim, tenho saudades do Júlio. Ainda não me decidi a telefonar-lhe. Não sei bem o que lhe diga. Mas sei que o nosso casamento foi muito bom e às vezes pergunto-me se não devíamos voltar.

A Vanessa estava a cair naquela armadilha que, juntamente com a autopiedade, ameaça permanentemente o ser humano: a falsificação do passado. O casamento não tinha sido nada bom, como uma data de coisas que fazemos aos 20 anos. Só que os actos medianos que cometemos aos 20 transformam-se, 30 anos depois, em glórias avassaladoras. Não há nada a fazer: as coisas são como são e são (sempre) assim.

Arrisquei dizer aquilo que raramente se deve dizer em casos destes: a verdade dos factos. Ou pelo menos a minha verdade relativa àqueles factos.

— Vanessa, o teu casamento com o Júlio foi um desastre! E tu sabes isso. Não percebo o que é que te está a dar agora.

A Vanessa suspirou:

— Pois, também acho. De qualquer forma, apesar de ter sido um desastre, isso não impede que tenha saudades! Há pessoas que têm saudades de desastres muito piores. Olha, se calhar é melhor telefonar ao Cavia.

— Ah, isso está bem!

Em várias alturas da sua vida, a Vanessa tinha andado com o Cavia. A ideia de que fosse telefonar ao Cavia — e não ao Júlio — tranquilizou-me.