Primeiro-ministro italiano demitiu-se, acusando Salvini de “oportunismo político”
A crise provocada pelo ministro do Interior e líder da Liga “expôs a Itália a graves riscos”, afirmou Giuseppe Conte, antes de apresentar a demissão.
O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, apresentou a demissão antes do debate em que devia ser votada a moção de desconfiança apresentada contra ele pela Liga de Matteo Salvini, um dos partidos que faz parte da coligação de governo. Mas fê-lo com um discurso arrasador para Salvini, em que o acusou de “oportunismo político”.
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O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, apresentou a demissão antes do debate em que devia ser votada a moção de desconfiança apresentada contra ele pela Liga de Matteo Salvini, um dos partidos que faz parte da coligação de governo. Mas fê-lo com um discurso arrasador para Salvini, em que o acusou de “oportunismo político”.
“Caro Matteo, suscitaste esta crise, não hesitaste em pedir plenos poderes aos italianos e evocaste as ruas. Devo dizer que me preocupa esta tua concepção. As nossas regras republicanas não permitem que se evoquem as ruas, estas questões resolvem-se no Parlamento”, afirmou o primeiro-ministro Conte, dirigindo-se directamente ao ministro do Interior, que estava sentado ao seu lado. Do outro lado de Conte, o outro vice-primeiro-ministro, Luigi Di Maio, manteve sempre um meio sorriso algo malévolo.
Matteo Salvini não parou quieto durante todo o longo discurso de Conte, o seu rosto traiu as suas emoções silenciosamente ao longo do discurso de Conte. As suas primeiras palavras, quando teve oportunidade de responder, foram “não tenho medo do julgamento do povo.” “Sou um homem livre, quem tem medo não é um homem ou uma mulher livre”, afirmou o líder de extrema-direita.
Lição de democracia
Mas passou quase uma hora a ouvir uma lição de democracia de Giuseppe Conte, que o acusou de ter falta de cultura institucional, de ser irresponsável. “Não precisamos de homens com plenos poderes, mas de homens com cultura de responsabilidade.” Salvini, disse Conte, “expôs o país a graves riscos”, nomeadamente financeiros. A prestação das obrigações da dívida pública italiana nos mercados tem reflectido os receios causados pelo regresso da instabilidade neste país da Europa do Sul, membro do eurogrupo, sempre encarado com desconfiança pelos investidores, desde 8 de Agosto, quando Salvini anunciou a moção de desconfiança.
O ministro do Interior “pôs em causa os interesses nacionais”, ao dar este passo para fazer cair o Governo, acusou Conte. Isto embora Salvini tenha dito que não retira os seus ministros do executivo. “Levar os cidadãos a votar é responsabilidade da República, mas não se pode pedir-lhes que votem todos os anos. É preciso haver responsabilidade e cultura institucional”, afirmou Giuseppe Conte, suscitando apupos e muitos aplausos numa sessão do Senado que muitas vezes raiou a insubordinação.
“Fala como Matteo Renzi”, disse-lhe Salvini, quando teve oportunidade para dar a réplica, mais emotiva e espectacular do que pensada. Durante o discurso de Conte, não parou de rabiscar e sublinhar na sua mesa, preparando a resposta no Senado.
Conte quase virou o debate ao contrário, transformando-o num libelo de acusação contra Salvini: parecia um rol de justificações para uma moção de desconfiança contra o ministro do Interior apresentada pelo primeiro-ministro, em vez da defesa deste à moção de desconfiança apresentada contra ele. Afirmou, preto no branco, que a Salvini falta cultura democrática e responsabilidade institucional – “qualidades fundamentais para quem quiser ser presidente do Conselho de Ministros, na verdade até ministro do Interior” –, coisa que fez Salvini abrir muito os olhos e levantar as sobrancelhas. “Em múltiplas ocasiões invadiste competências de outros ministros, o que prejudicou a eficácia das acções”, disse o primeiro-ministro.
Mas a estocada final veio quando Conte mencionou algo que, avisou, nunca tinha dito a Salvini. “Deves evitar usar símbolos religiosos em comícios políticos”, aconselhou, referindo-se à exibição cada vez mais comum de crucifixos, cruzes e medalhas religiosas por parte do líder da Liga. Salvini aproveitou para beijar o terço, em mais uma exibição de desafio. “Este conselho não é uma interferência nos princípios religiosos, mas um alerta para a inconsciência religiosa. Não se deve ofender o princípio da laicidade do Estado moderno”, sublinhou Giuseppe Conte, que neste discurso de despedida disse tudo o que lhe ia na alma.
O senador Nicola Morra, do Movimento 5 Estrelas (M5S), e presidente da Comissão Anti-Máfia, na sua intervenção, lembrou Salvini que na Calábria, os grupos mafiosos exibem símbolos religiosos, como o terço, para enviar mensagens.
Renzi ao ataque
Já Matteo Renzi, senador do Partido Democrático (PD), que se tem multiplicado em entrevistas e iniciativas para negociar uma aliança de governo alternativa entre o seu partido e o Movimento 5 Estrelas, discursou a seguir a Salvini, atacando energicamente a sua política – começando pela forte acção punitiva em relação aos imigrantes. Considerou “vergonhosa” a política migratória” do ministro do Interior e exigiu-lhe esclarecimentos sobre as suspeitas de financiamento russo ao seu partido, a Liga, sobre o qual a Procuradoria de Milão abriu um inquérito.
Quando o debate se tornou mais morno, Salvini deixou o Senado e foi para o Ministério do Interior, fazer uma live na Internet, sem ter limitações ao seu discurso.
Muito se fala desta hipótese alternativa de maioria governamental, mas ainda nada está confirmado, apenas se sabe que há contactos, e que têm corrido bem. As regras ditam que Conte apresente a sua demissão ao Presidente Sergio Mattarella. A partir daí, o chefe de Estado é obrigado a consultar os líderes das forças políticas representadas no Parlamento para verificar se existe maioria para formar novo governo. Mesmo que não exista maioria, antes de convocar as eleições antecipadas que Salvini deseja – porque as sondagens o apontam como o político mais popular de Itália –, tem ainda a possibilidade de optar por um governo tecnocrático, como foi o de Mario Monti, por exemplo. Evitar eleições no Outono - algo que nunca aconteceu - é um desejo quase unânime, por atrasar a aprovação do Orçamento de Estado.
Há resistências a uma aliança PD-M5S dentro destes dois partidos. E Salvini ainda não desistiu de estar no governo. Os seus potenciais aliados são os Irmãos de Itália, de Giorgia Melone e a Força Itália, de Silvio Berlusconi.
O ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia Romano Prodi avançou com a proposta de uma coligação mais alargada, a que baptizou Ursula – numa alusão à presidente eleita da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – e que além do M5S e do PD se poderia alargar à Força Itália, de Silvio Berlusconi, direita. Seria algo semelhante à coligação formada para eleger a nova presidente da Comissão, travando o avanço das forças populistas no Parlamento Europeu, que tinham precisamente Salvini como promotor de uma aliança pan-europeia. Mas esta hipótese parece menos provável.