Reflexões sobre a bonificação por deficiência em crianças e jovens
No actual estado da lei, os médicos oftalmologistas devem preencher o impresso sempre que isso lhes for solicitado.
Nas últimas semanas ganhou visibilidade pública a existência de uma bonificação para crianças e jovens portadores de deficiência. Esta bonificação, que existe desde 1997, corresponde a uma prestação pecuniária mensal, variável em função da idade, que acresce ao abono de família dessas crianças ou jovens com deficiência.
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Nas últimas semanas ganhou visibilidade pública a existência de uma bonificação para crianças e jovens portadores de deficiência. Esta bonificação, que existe desde 1997, corresponde a uma prestação pecuniária mensal, variável em função da idade, que acresce ao abono de família dessas crianças ou jovens com deficiência.
O pedido de bonificação realiza-se em impresso próprio (Modelo RP 5034/2018-DGSS), que deve ser preenchido pelo médico especialista na deficiência em causa ou pelo médico assistente.
A divulgação da existência de uma tal prestação social, associada à ideia generalizada de que a simples necessidade de usar óculos constitui uma deficiência, levou a um aumento inusitado de pedidos de bonificação por deficiência à segurança social por razões exclusivamente oftalmológicas.
Alguns oftalmologistas de forma individual têm questionado publicamente a licitude desta bonificação às crianças que usam óculos por serem portadoras de simples erros refractivos. A este propósito, a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO), através do seu site oficial, emitiu um comunicado que, sendo destinado aos oftalmologistas seus associados, acabou por se tornar público, com grande amplificação mediática.
O comunicado da SPO teve, desde logo, duas virtudes: (i) iniciou a discussão pública relativamente à licitude desta prestação; (ii) clarificou o conceito técnico (médico) de deficiência. Com base nesse conceito, a SPO defende que os oftalmologistas devem recusar o preenchimento nos casos em que não se verifique a presença de qualquer deficiência definida por critérios médicos; defende a SPO que, não havendo deficiência, não deve haver lugar ao preenchimento.
Pessoalmente compreendo a posição da SPO; entendo que é uma posição justa. Em todo o caso, este assunto parece-me bem mais complexo, não podendo ficar circunscrito a este raciocínio.
Para além dos conceitos técnicos e científicos, o médico deve orientar o exercício da sua actividade com base noutros princípios, que incluem a legislação em vigor.
O Decreto-Lei 133-B/1997 define a política social do Estado Português; os artigos 6.º e 7.º regulamentam o direito a uma bonificação em acréscimo ao abono de família, para crianças e jovens portadoras de deficiência; o art.º 21.º caracteriza a deficiência para efeitos de bonificação do subsídio familiar, e diz o seguinte:
“Consideram-se crianças e jovens portadores de deficiência, para efeitos de atribuição da bonificação do subsídio familiar a crianças e jovens, os descendentes de idade inferior a 24 anos que, por motivo de perda ou anomalia congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica, se encontrem em alguma das seguintes situações:
a) Necessitem de apoio individualizado pedagógico e/ou terapêutico específico, adequado à natureza e características da deficiência de que sejam portadores, como meio de impedir o seu agravamento, anular ou atenuar os seus efeitos e permitir a sua plena integração social;
b) …"
O conceito legal de deficiência presente na lei (em vigor) é bastante diferente do conceito técnico do oftalmologista (explicado no comunicado da SPO)... e até do senso comum.
Tendo por base esta caracterização legal de deficiência para efeitos de bonificação (é isto que está em causa), imaginemos, por ex., o caso paradigmático de uma criança de seis anos que usa óculos por ser portador de uma miopia de duas dioptrias; parece-me consensual que nenhum oftalmologista atribuiria qualquer grau de deficiência a esta criança. Em todo o caso, vejamos se, de acordo com a lei, esta criança é ou não portadora de uma “deficiência”:
– enquadramento do art.º 21.º: (i) tem uma anomalia? (parece consensual que sim: é míope); (ii) congénita ou adquirida? (eu diria adquirida); (iii) de estrutura ou função? (essencialmente de função); psicológica, intelectual, fisiológica anatómica? (neste caso parece-me apenas fisiológica);
– alínea a): esta criança necessita de apoio terapêutico específico de forma a anular ou atenuar os seus efeitos e permitir a sua integração social? A resposta também me parece consensual: esta criança precisa de compensação óptica!
Temos assim consumada a presença de uma “deficiência”(!) de acordo com a “caracterização legal de deficiência no âmbito de uma lei de política social”. Ou seja, estamos na presença de uma criança que, não sendo tecnicamente (e no senso comum) deficiente, é legalmente “deficiente” para efeitos de atribuição de uma bonificação social.
Este é um aspecto essencial que devemos ter presente nesta discussão: o que está em causa não é o nosso conceito médico de deficiência. O que está verdadeiramente em causa é a caracterização de “deficiência” legislada para atribuição de uma prestação social específica.
A segunda directiva legal que devemos ter em conta diz respeito ao estatuto da Ordem dos Médicos (OM) (Lei 217/15) e ao respectivo código deontológico: “o médico tem o dever de atestar e registar os estados de saúde ou doença... quando para isso for solicitado” (art.º 44.º).
Voltemos então à questão inicial: o médico oftalmologista deve ou não preencher o impresso de bonificação por deficiência quando isso lhe for solicitado?
No âmbito das notícias vindas a público, relativamente à atribuição, eventualmente indevida, desta bonificação, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social emitiu um comunicado, declinando responsabilidades. Segundo o comunicado, “é dos médicos a total responsabilidade de atestar o tipo de deficiência, a natureza da deficiência e se esta, a existir, tem ou não efeitos e quais para o desenvolvimento da criança”. O comunicado é em minha opinião simplista; desresponsabiliza a tutela e os serviços da Segurança Social, transferindo essa responsabilidade para a classe médica. Existe no impresso um terceiro campo (pouco claro na lei) que questiona sobre os efeitos da deficiência no desenvolvimento da criança; em minha opinião, é aqui que o oftalmologista deve ser assertivo no seu parecer, baseado na competência técnica, respondendo de forma inequívoca que esta “deficiência” não produz qualquer efeito no desenvolvimento da criança. Em todo o caso, na maioria das vezes que o fiz, a bonificação foi atribuída apesar do teor das minhas declarações.
No actual estado da lei (e da estrutura do modelo RP 5034/2018-DGSS), os médicos oftalmologistas devem, em minha opinião, preencher o impresso sempre que isso lhes for solicitado.
Ao fazê-lo, cumprem a sua obrigação deontológica para com os doentes que lho solicitam, atestando o que está definido por uma lei elaborada para uma prestação social específica.
Os médicos não são responsáveis pela lei; mas poderão ser responsabilizados pelo seu incumprimento; para além disso, não devem permitir que os responsabilizem pelo cumprimento de uma lei sustentada em princípios ideológicos, mas tecnicamente desajustada.
Pelo seu saber e pela sua consciência cívica, os médicos podem e devem sensibilizar a tutela para a justeza e para a proporcionalidade (ou falta dela) de prestações sociais que se sustentem em critérios tecnicamente errados, mas é ao Governo que compete decidir politicamente sobre a criação desses apoios. Não se pode depois transferir a responsabilidade para a classe médica!
Em sede própria, a OM (colégio incluído) já se disponibilizou para clarificar e resolver os paradoxos da lei.