Pagam a Salvini para ser uma “alma má”?

Salvini pode hoje dizer que “não lhe pagam para ser uma alma boa” sem que por essa razão mereça o desprezo que tradicionalmente as democracias concediam às almas más porque o discurso da extrema-direita se institucionalizou

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Reuters/CIRO DE LUCA

O ministro italiano que recusou a acostagem de um navio com 147 imigrantes em situação de urgência diz que não é pago para ser uma “alma boa”. Pagam-lhe para ser o quê?

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O ministro italiano que recusou a acostagem de um navio com 147 imigrantes em situação de urgência diz que não é pago para ser uma “alma boa”. Pagam-lhe para ser o quê?

A tragédia humanitária no navio Open Arms que o ministro do interior italiano Matteo Salvini alimentou contra os tribunais do país, contra os apelos de personalidades de diferentes áreas e de todo o mundo, de governos e de organizações internacionais não pode nem deve ser enquadrada nas normais diferenças de opinião face à emigração que tem a Europa como destino. O que estava em causa com muitos dos 147 emigrantes apanhados há duas semanas num barco à deriva no Mediterrâneo era o que um tribunal italiano designou como uma “situação de gravidade e de urgência excepcionais”. Estavam, e estão, em causa vidas humanas, entre as quais crianças e foi por isso que até membros do Governo italiano, incluindo o primeiro-ministro Giuseppe Conte, protestaram contra a intransigência de Salvini. Foi por isso também que esta quinta-feira seis países, entre os quais Portugal, decidiram acolher os náufragos do Open Arms.

A recusa de Salvini em abrir os portos italianos a seres humanos em risco de vida (mesmo depois de haver países dispostos a acolhê-los) está muito para lá das discussões convencionais sobre como deve, ou pode, a Europa lidar com o êxodo de emigrantes. Na sua decisão de contrariar os tribunais e de obrigar a polícia italiana a impedir a acostagem do Open Arms não conta a compreensível recusa de Itália de ser, como chegou a ser, a dona exclusiva de um problema que os demais parceiros europeus não queriam encarar. Nem está sequer em questão o programa político que elege a emigração como a causa da doença económica e do fracasso político e social que contamina a Itália. O que está em causa é algo bem mais simples e, ao mesmo tempo, difícil de aceitar: é o desprezo por regras humanitárias básicas.

Salvini pode hoje dizer que “não lhe pagam para ser uma alma boa” sem que por essa razão mereça o desprezo que tradicionalmente as democracias concediam às almas más porque o discurso da extrema-direita se institucionalizou. Haver um ministro europeu que recusa a acostagem de um navio onde há pessoas em risco de vida e fazer disso gala e programa é algo que não pode ser visto à luz das tradicionais clivagens entre a esquerda e a direita, entre os que acreditam na visão idílica de uma Europa de portas escancaradas e os que defendem a utopia de muros para a isolar. O que está em causa transcende essas dicotomias. O que está em causa é a diferença entre a decência e a barbárie. Nenhum cidadão decente pode ter a mínima simpatia por bestialidades assim.