Entre a fábula do ouro, o conto do metal e a realidade das explorações mineiras: o “não” que urge para a mudança de paradigma
A nossa dívida, para com o Estado e para com a economia do país, está saldada: o ouro que queremos agora não é negro nem é branco, mas é de uma matiz única e sem preço que só quem neste Interior habita consegue sentir e compreender.
O tema da desertificação e abandono do Interior tem sido recorrentemente referenciado como um dos problemas na conjuntura nacional e várias estratégias têm sido apresentadas como possíveis soluções. A última foi enquadrá-la na denominada “febre do lítio”, propagandeada como a tábua de salvação para a economia e para a demografia das regiões mais esquecidas do país. Vamos contextualizar recorrendo à História e aos factos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O tema da desertificação e abandono do Interior tem sido recorrentemente referenciado como um dos problemas na conjuntura nacional e várias estratégias têm sido apresentadas como possíveis soluções. A última foi enquadrá-la na denominada “febre do lítio”, propagandeada como a tábua de salvação para a economia e para a demografia das regiões mais esquecidas do país. Vamos contextualizar recorrendo à História e aos factos.
Na sequência da Revolução Industrial do século XVIII, os últimos séculos têm sido marcados por um aumento exponencial da exploração de recursos minerais, a nível mundial, relativamente a todos os períodos históricos precedentes. As guerras que marcaram em particular o século XX fizeram que esse facto tomasse proporções nunca antes vistas, e Portugal não se alienou nesta conjuntura: aqui foi notório um aumento do número de explorações mineiras ainda no decurso da 1.ª Guerra Mundial, mas foi durante a 2.ª Guerra Mundial que, com as políticas de fomento mineiro incipientemente implementadas pelo Estado Novo, essa realidade se implantou à força no dia-a-dia das gentes do Interior. Um tempo que ficou conhecido como a “febre do volfrâmio”.
Entre os anos de 1939 e 1944, a estratégica política neutral de António de Oliveira Salazar face ao conflito armado na Europa levou a que a corrida ao volfrâmio no nosso país estabelecesse critérios que, até essa data, eram de aplicação amorfa, e que resultavam de toda uma acção especulativa que oscilava entre os interesses de proprietários locais e grandes companhias mineiras estrangeiras, com a produção a ser essencialmente canalizada para a exportação com irrisórios benefícios para o país – um modelo que, neste tempo, continuou contudo a vingar. Conhecendo-se nesta altura mais de três milhares de jazidas minerais em Portugal, durante este período forasteiros oriundos de várias partes do país invadiram as localidades e os locais onde a existência do mineral foi apontada, contribuindo para um significativo aumento populacional. Pequenas e grandes minas foram surgindo um pouco por todo o Interior norte e centro, arrastando consigo um número adensado de indivíduos atraídos pelos augúrios de riqueza e de trabalho que, ao mesmo tempo, trouxeram também graves problemas sociais a uma realidade essencialmente rural, pobre, analfabeta e nada preparada para a abundância virtual do “ouro negro” (designação dada, à altura, ao volfrâmio). Ainda hoje, volvido mais de meio século sobre esse período da nossa História, o legado permanece vincado na memória das populações e dos lugares, alimentado pela presença das infra-estruturas devolutas e das toneladas de materiais inertes que teimam em resistir e que assinalam o local onde esta “febre” se estabeleceu e vingou durante um breve espaço de tempo. Dos forasteiros – que juntamente com os camponeses locais formaram a força motriz das minas –, ficaram as sombras.
Hoje a realidade do Interior do país é diametralmente diferente. Não foram as explorações mineiras do século passado que trouxeram o desenvolvimento, a educação e a literacia mas sim e também o fluxo migratório/emigratório que destas degenerou quando os mercados mundiais e a desvalorização dos minérios ditaram o seu fecho e as pessoas rumaram ao litoral e ao estrangeiro na demanda de melhor sorte. As poucas explorações que subsistem actualmente, controladas maioritariamente por capital estrangeiro, continuam a seguir o modelo de exportação do passado, pouco contribuindo para a riqueza efectiva do país num contexto em que o Estado pouco fiscaliza ou regula. Mas agora prometem-nos que tudo vai mudar, porque sob os augúrios desta nova sociedade tecnológica surgiu um novo ouro e desta vez branco: o lítio.
Vivemos tempos em que, sob a égide do lítio, foram lançados dezenas de pedidos de prospecção e pesquisa deste e outros minerais para o território português, sendo que existem, neste panorama, já três pedidos de exploração efectiva, a céu aberto, que já se encontram concessionados (em Montalegre, à empresa Lusorecursos, Lda.) ou em vias de concessão (em Covas do Barroso, à empresa Savannah Resources, e na Serra da Argemela, à empresa PANNN/Almina, SGPS). O lítio é apontado como o recurso que irá resolver o passivo ambiental resultante das emissões de carbono, que irá resolver a dependência energética da União Europeia face às grandes potências litiníferas (nomeadamente China, Austrália e Chile) e que irá fazer retroceder o impacto do tormento das alterações climáticas, avançando Portugal como o “Eldorado” europeu onde todas as promessas se concretizam.
O subsolo nacional pertence ao domínio público, mas no âmbito das concessões mineiras a envolvência da população, obrigatória por lei, é claramente deficitária e resume-se a avisos públicos que escapam inteiramente aos mais incautos e a períodos de consulta pública dos quais se desconhecem as respostas e os efeitos. É este o contexto em que estão envolvidas as três concessões já referidas para exploração – Mina da Sepeda, Montalegre; Mina do Barroso, Covas do Barroso; e Mina da Argemela, Barco, Covilhã –, sendo que apenas nesta última a movimentação cívica durante o período de consulta pública se fez sentir, com origem numa petição enviada para a Assembleia da República em 2017 e a aprovação de uma carta de recomendação ao Governo a solicitar a não concessão mineira do local, aprovada em plenário e por unanimidade por todas as bancadas parlamentares em 2018 – ainda hoje sem efeitos efectivos.
A máxima rentabilidade que se pretende de uma exploração mineira encontra-se fundamentalmente dependente do valor dos recursos minerais existentes nos filões, cotados em bolsa, e da especulação em torno desta mesma valorização; de facto, existem filões litiníferos no nosso subsolo, mas o lítio – o “ouro branco” – não surge isolado: outros recursos minerais estão-lhe associados (entre eles estanho, cobre, ouro, terras raras) e é este facto que eventualmente tornará, no nosso país, a extracção de lítio rentável (no caso específico da Mina da Argemela, está prevista a extracção de 15 recursos minerais, numa só área). A avaliação de existência de lítio no nosso subsolo não é recente, mas na última década têm-se adensado os estudos geoquímicos que apontam valores e que tentam comprovar a viabilidade da extracção do recurso mineral em Portugal. O Relatório do Lítio, publicado em 2017, é um documento que resume o levantamento das nove áreas onde trabalhos mineiros anteriores determinaram a existência de lítio, e no qual se enquadra a avaliação técnica da rentabilidade da sua extracção, em moldes onde se misturam a urgência da descarbonização com o potencial desenvolvimento económico do país derivado do aproveitamento da cadeia de valor.
Outra promessa são os postos de trabalho: outrora a força motriz de uma mina eram as mãos humanas, mas hoje as máquinas substituem sem grandes custos o considerável investimento em pessoal; mesmo assim são prometidos centenas de empregos directos e indirectos (grande parte deles, como é claro nas PDA acima referidas, em regime de subcontratação e, logo, precários), que variarão conforme as necessidades da exploração. O período de vida de uma mina – que se mantém enquanto durar a rentabilidade da extracção – ronda, nestes casos e nas melhores previsões, cerca de duas décadas, porque o modelo de extracção previsto, a céu aberto, é mais rápido e mais eficaz na remoção da rocha encaixante que contém o filão. Irá promover decerto a contratação de quadros técnicos superiores do exterior, irá fomentar e financiar a investigação nas universidades, irá trazer máquinas – não habitantes. Irá, isso sim, hipotecar a vida das populações residentes como um facto consumado com final à vista, com a justificação de que os recursos minerais a explorar são inamovíveis e que é no local onde existem que têm de ser explorados, não deixando às populações outro remédio que viver em silêncio com as migalhas das medidas de mitigação dos impactes inevitáveis (numa realidade em que o Estado pouco ou nada intervém na responsabilização das empresas) porque o bem da economia da Nação, dizem, é soberano – e alguém tem de acarretar com os sacrifícios.
Sabemos que o Estado nunca teve o capital necessário para injectar num plano de fomento mineiro nacional exequível, e que esse papel é delegado aos privados que são agora, pelo primeiro e sob o apadrinhamento da União Europeia e do lema da autonomia energética/descarbonização, aliciados a investir no nosso país, tornando-os detentores de uma série de bonificações que, em última análise, enriquecem apenas uns poucos; face à volátil especulação em torno dos recursos minerais, estas empresas nunca darão garantias de ressarcir, na totalidade, as populações locais pelos danos provocados, a nível patrimonial e económico (não existirão quaisquer indemnizações aos proprietários pela desvalorização imobiliária provocada pela existência de uma mina na área limítrofe das freguesias), demográfico (ninguém quererá habitar e fixar-se nas localidades com uma mina por perto), ambiental (por mais planos de recuperação que projectem, os impactes na flora e na fauna serão contundentes e demoradamente reversíveis) e hidrográfico (uma mina não existe sem água, mas o ser humano também não). Todos estes danos terão de ser pagos pelas populações, e estas não contam na tabela das compensações e nem nos planos de viabilidade económica de um pedido de exploração – não contam sequer na equação nem nas leis que regulamentam o sector.
Vivemos tempos em que a balança do lucro a curto prazo tem de ser posta em causa e em que temos de deixar de lado a filosofia do “depois logo se vê”; tudo à nossa volta depende da exploração dos recursos naturais e a nossa pegada ecológica está a ser, nesta dimensão e neste mundo pejado de tecnologia, conforto e consumo, insuportável para o planeta e insustentável para as novas gerações. Apresentam-nos como solução para este excesso de explorações ainda mais explorações e nesse contexto acusam-nos de, egoisticamente, não querermos minas no nosso quintal, mas o facto é que elas já existem em muitos dos quintais das localidades deste Interior onde vivemos. Pelas memórias que elas nos deixaram, contadas pela boca dos nossos pais e dos nossos avós que nelas trabalharam, e pela presença que delas foi deixada e que vemos todos os dias. A nossa dívida, para com o Estado e para com a economia do país, está saldada: o ouro que queremos agora não é negro nem é branco, mas é de uma matiz única e sem preço que só quem neste Interior habita consegue sentir e compreender.