A diplomacia do cancro
Não podemos simplesmente fazer explodir uma bomba para acabar com o cancro de vez, pelo que há que substituir a guerra pela diplomacia, recorrendo a uma abordagem mais racional.
O cancro é uma doença grave com que milhões de pessoas têm de lidar em todo o mundo e, ao contrário do que sucedia há 20 ou 30 anos, já não constitui uma sentença de morte em 100% por casos. Talvez por isso se tenha começado a dizer efectivamente o nome de uma doença que era comummente tratada nos seguintes termos: “fulano tem uma coisa má” ou “sicrano morreu de doença prolongada”.
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O cancro é uma doença grave com que milhões de pessoas têm de lidar em todo o mundo e, ao contrário do que sucedia há 20 ou 30 anos, já não constitui uma sentença de morte em 100% por casos. Talvez por isso se tenha começado a dizer efectivamente o nome de uma doença que era comummente tratada nos seguintes termos: “fulano tem uma coisa má” ou “sicrano morreu de doença prolongada”.
Depois, além da componente humana, que é a que mais interessa, o cancro é um negócio de muitos milhões. E fazer as pessoas sentirem que estão debaixo de ameaça, amedrontando-as, é um truque comercial há muito identificado e com maravilhosos resultados práticos na obtenção de lucros. E não há melhor forma de o fazer do que recorrer a uma linguagem bélica, que envolva expressões que remetam para morte ou tragédia, duas palavras directamente conotadas com a guerra.
Naturalmente que isso acabou por ser levado para a forma como se trata da doença, ou seja, é linguagem comum entre quem lida com situações oncológicas, desde os profissionais de saúde até às associações de apoio. E, levantando desde já uma pontinha do véu sobre a conclusão, isso é negativo.
As expressões relacionadas com guerra pretendem levar a pessoa a defender-se de um ataque (de uma doença, neste caso), o que apela ao nosso instinto mais básico: a sobrevivência. Até a mais pacífica das pessoas reage de forma agressiva quando se vê ameaçado, pelo que acaba por ser natural uma reacção mais agressiva por parte de quem é diagnosticado com cancro, que tudo o quer é resolver a situação o quanto antes, iniciando uma guerra para matar o que lhe está a ameaçar a sobrevivência.
E é aqui que quem acompanha a pessoa que padece de cancro deve intervir de uma forma diferente, incutindo outra filosofia que não a bélica. Isto porque, todos sabemos, e os profissionais de saúde melhor do que ninguém, que o cancro não é uma coisa que se resolva de um momento para o outro. Não podemos simplesmente fazer explodir uma bomba para acabar com a coisa de vez, pelo que há que substituir a guerra pela diplomacia, recorrendo a uma abordagem mais racional. Caso contrário, a revolta e a situação de injustiça vão consumir boa parte da energia que a pessoa com o cancro necessita para lidar com tudo o que envolve a doença, e que é muito e a diversos níveis. Qual é o soldado que não se revolta com uma guerra? A intenção bélica é, à partida, negativa.
Também parti para o meu caso particular com o cancro com essa perspectiva de matar a coisa. Mas depois mudei de opinião. Aliás, o subtítulo do meu primeiro livro O Sofrimento Pode Esperar refere: “Diário de três vitórias contra o cancro”. Foi uma sugestão da editora que aceitei. Mas hoje não o faria assim. Aliás, o meu editor também já o assumiu que não o faria.
Vitória e derrota são expressões que não se devem usar quando se fala de cancro. Eu não quero ser um vencedor do cancro, sou só mais uma das milhões de pessoas que lidaram ou lidam com isso. Não há uma abordagem 100% certa, mas há, e disso tenho a certeza, que deixar espaço a cada um para procurar a melhor forma de lidar com o problema, não incutindo uma abordagem de conflito.
Mas este é uma questão dos nossos dias em todas as áreas da sociedade. A construção de algo é demasiadas vezes feita contra alguma coisa, como se o ponto de partida seja sempre estar contra. E as referências bélicas estão em todo o lado. No futebol por exemplo, para falar de uma coisa muito popular no nosso país, uma realidade que conheço bem, até porque faço parte da equipa técnica de uma equipa da modalidade, é comum ouvir dizer que “vamos para a guerra”. Não na minha equipa em concreto; preferimos não incutir esse espírito. Mas é algo que oiço amiúde.
Acredito muito mais na disciplina do que na motivação. Seja no cancro, seja em qualquer outra área da vida. É normal termos mais ou menos motivação para lidar com isto ou com aquilo, para fazermos isto ou aquilo. Mas é a disciplina que nos mantém focados naquilo que mais interessa — que no caso da pessoa que lida com o cancro é viver mesmo estando doente, tentando ser, acima de tudo, racional. E é essa a abordagem que acredito que se deve ter.
As coisas são o que são, temos o que temos. Não se trata de conformismo, trata-se de perceber que não podemos controlar nada e que temos que lidar com o momento actual.
Perguntam-me muitas vezes se ser optimista foi fundamental para a minha cura. Respondo sempre da mesma forma: em primeiro lugar, nunca estamos curados de nada: o nosso corpo vive numa gestão de inúmeras agressões, sejam interiores ou exteriores, pelo que falar de cura ou de estar curado é uma ilusão. Depois, sobre a importância do optimismo para aquilo que se convencionou chamar de cura, tenho a dizer que não faço a mínima ideia. Mas sei que viver de forma mais racional me permitiu lidar melhor com o cancro, aproveitando melhor o dia-a-dia enquanto estava doente. Sem guerra, agressividade ou revolta. E não fui sempre optimista. Fui, às vezes; outras não. Foi variando de acordo com o que estava a viver. É fácil ser optimista quando estamos bem, é difícil sê-lo quando estamos mal.
A expressão “guerra” apela à agressividade, a matar alguma coisa ou alguém, provoca temor e insegurança — tudo o que não queremos quando se vive com cancro, cheios de dúvidas sobre como será o dia seguinte, pois promovem o foco na doença e na cura. O que precisamos nesse caso, e sempre, é viver o dia-a-dia. Vivendo, não sobrevivendo. “Sobreviver ao cancro” é outra das expressões que acho desadequada e que não deve ser utilizava com alguém que lida com a doença, pois coloca a situação no fio da navalha, ou seja, entre a vida e a morte.
E sobreviver é uma versão diminuída de viver. Ninguém se deve contentar com isso.
* jornalista, palestrante e autor dos livros O Sofrimento Pode Esperar (Ed. Albatroz) e Quantas vidas temos? (Coolbooks)