Políticas públicas vs. Evidência científica
Não só as políticas públicas baseadas em evidência científica não são norma como, inclusivamente, se verifica o contrário.
Atualmente, para a nossa classe política, questionar se as políticas públicas e as estratégias que as preconizam devem ou não ser baseadas em evidência científica parece ser algo totalmente despropositado.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Atualmente, para a nossa classe política, questionar se as políticas públicas e as estratégias que as preconizam devem ou não ser baseadas em evidência científica parece ser algo totalmente despropositado.
Para um investimento que usa dinheiros públicos, por vezes na ordem dos milhões de euros, haver uma base assente em evidência científica faria sentido, independentemente do programa ou política de que adviesse. Isto representaria, para os agentes políticos e respetivos governos, a segurança de que o que seria aplicado teria o retorno esperado, assim como a justificação devida no caso de determinado programa, investimento ou política pública vir a ser descontinuado, o que só teria lugar no caso de os resultados esperados não serem atingidos.
Esta base de dados e estudos rigorosos, exaustivos e credíveis levaria a que, inevitavelmente, a sociedade se sentisse mais confiante no apoio aos sucessivos governos e, inclusivamente, ao traçar de novas políticas. No entanto, não é isso que se sucede. Não só as políticas públicas baseadas em evidência científica não são norma como, inclusivamente, se verifica o contrário.
O Estado, através da sucessão de diferentes governos, atua quase sempre por tentativa/erro, nunca sabendo antecipadamente se a opção tomada é a mais adequada/correta (tem uma convicção!). Há, sim, uma pressa comum, em qualquer governo que gere o Estado, de afirmar que os seus antecessores estavam errados. Sem procurar compreender se, de facto, o estavam, ou porque é que o estavam. Consequentemente, isto resulta não só em novas políticas erradas, como também numa política “geral” errática, pouco pensada e, seguramente, pouco avaliada e muito dispendiosa (porque faz e desfaz continuamente).
Hoje, com o imenso avanço científico e tecnológico, nomeadamente no que concerne à recolha e tratamento de dados, esta questão da “evidência científica” faz mais sentido do que nunca. São já vários os países onde governos de cores diferentes reconhecem a necessidade da evidência para o desenho de políticas públicas e da aplicação de indicadores para as avaliar, redesenhar ou descontinuar. Entre estes países conta-se o Reino Unido, Canadá, Índia, África do Sul, Irlanda, Nova Zelândia, entre outros. O anterior Chief Scientific Adviser (CSA) da Nova Zelândia, Sir Peter Gluckman, é atualmente chair do INGSA (International Network for Governments Scientific Advisers). Nos Estados Unidos, Obama criou o PCAST (President’s Council of Advisers on Science and Technology) e José Manuel Durão Barroso, no último mandato como presidente da Comissão Europeia, instituiu quer o cargo de Chief Scientific Adviser como um conselho, o Science and Technology Advisory Council, constituído por personalidades de áreas diferentes da ciência e de diferentes Estados-membros.
O principal fórum, no entanto, para que os CSA possam interagir e discutir ideias e evidências científicas é o Carnegie Group of Science Advisers, criado em 1991 com o fim de permitir que CSA’s e ministros da Ciência dos países que constituem o G8 se encontrassem anualmente. Este grupo foi recentemente alargado para incluir Brasil, China, Índia, México e África do Sul, reconhecendo-se ser necessária uma rede mais alargada, mais global e mais inclusiva. Em 2012, para refletir sobre esta rede, o CSA do Quebeque convidou todos os CSA para um encontro em Montreal.
Entre a classe política começa-se a adquirir a noção de que resultados a longo prazo podem ser previsíveis e até mesmo (espanto!) precisos e rigorosos. Assim, este modelo de tornar o desenho de políticas públicas num processo científico, guiado por números, tecnologia, ciência e conhecimento, acaba também por resultar em governos que se tornam, eles próprios, laboratórios de inovação, preocupados não com o atrair de votos através de chavões vazios, mas sim através do que realmente funciona. A ser seguida, esta ideia, que vai ganhando peso, poderá mudar radicalmente o discurso político (ou os políticos) e até reconciliá-lo com a sociedade.
Hoje, o discurso dos partidos políticos visa apropriar-se da consciência da sociedade, sem o sustentar em números reais e credíveis. Não é rara a ousadia de falar em nome de “membros da sociedade” (trabalhadores, operários, agricultores, enfermeiros, médicos, professores, entre outros), sem ouvirem os mesmos (exceto em campanha, claro).
Consequentemente, torna-se cada vez mais claro que uma grande percentagem destes mesmos membros da sociedade não acredita no que ouve, dado que a abstenção aumenta continuamente desde 2002. Menospreza-se a inteligência, o conhecimento e a liberdade de pensamento do povo que todos dizem querer proteger.
Claro que existem contra-argumentos à posição que aqui defendo. Nomeadamente, há quem refira que o desenho de políticas públicas baseadas em evidência científica não atingiria os objetivos propostos, dada a própria evidência científica poder ser alvo de “opiniões” diversas, pela dimensão dos dados recolhidos.
No entanto, tal não justifica que não se tente esta abordagem. Não o tentar é conformarmo-nos com o desgaste inevitável da classe política e com o divórcio da sociedade face à mesma. O que atualmente se passa expõe a democracia a um perigo que, a continuar, é da inteira responsabilidade dos partidos políticos do chamado “arco da governação” (hoje representado por todos aqueles que têm assento na AR). Se é certo que existem demasiados dados, também é um facto que existe hoje uma imensa e avançada tecnologia para os tratar.
Talvez a principal razão para não se ter em conta a evidência científica seja, na verdade, a desadequação da recolha e tratamento de dados no que concerne à pressão eleitoral (em que um mandato corresponde somente a quatro anos). Isto resulta também na impossibilidade de todo o espectro político ter apenas uma preocupação: o bem-estar do país e o seu desenvolvimento económico. Um desenvolvimento económico que não esteja somente centrado em atingir um défice zero dentro de um ou dois anos, e sim que assente em políticas públicas devidamente discutidas em termos científicos, cuja continuação/alteração resulte de fundamento cientificamente comprovado (algo que poderá demorar dez a 20 anos).
Portugal, que desde 1974 já por três vezes teve de pedir ajuda externa, necessita de não ceder à tentação eleitoralista e imediata, apostando num objetivo a longo prazo, que permita um bem-estar económico e social estável, e um futuro sem medos nem sobressaltos.
Portugal, já o referi, é um país onde a abstenção tem crescido. Quando tal se dá, não há nenhum partido que ganhe – há, sim, um país que perde esperança. Cabe-nos exigir e alterar o modelo de fazer política que se instituiu, onde o discurso se pauta por chavões e sobre o que irá ser feito, sem nunca se preocupar no “como” será feito.
Enquanto sociedade, devemos pedir contas, exigir justificações. Para este fim, a evidência científica faz todo o sentido.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico