Ricardo Galvão não tolerou a conversa de “botequim” de Bolsonaro contra a ciência e foi despedido

Depois de ver os dados sobre a desflorestação da Amazónia postos em causa pelo Presidente, o físico que era director do INPE decidiu não se calar. A sua demissão é também a história da má relação do Governo brasileiro com a ciência.

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Galvão descreve meses de pouco diálogo e cooperação com o Ministério do Meio Ambiente DR

Há mais de uma semana que o telemóvel do físico Ricardo Galvão não pára de tocar. Diz ter recebido mais de 200 mensagens de alunos a dar-lhe os parabéns “pela defesa da ciência brasileira”. Nas últimas semanas, o cientista de 71 anos protagonizou um duro embate com o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que culminou na última sexta-feira na sua saída da direcção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com o qual colaborou durante várias décadas.

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Há mais de uma semana que o telemóvel do físico Ricardo Galvão não pára de tocar. Diz ter recebido mais de 200 mensagens de alunos a dar-lhe os parabéns “pela defesa da ciência brasileira”. Nas últimas semanas, o cientista de 71 anos protagonizou um duro embate com o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que culminou na última sexta-feira na sua saída da direcção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com o qual colaborou durante várias décadas.

Ao ouvir Bolsonaro classificar os dados sobre a desflorestação da Amazónia recolhidos pelo INPE como “mentirosos”, Galvão não se conteve. Respondeu de uma forma que reconheceu ter sido “bastante forte”. O então director do instituto comparou os comentários do chefe de Estado a uma conversa de “botequim” e acusou-o de fazer “uma piada de um garoto de 14 anos”.

O confronto aberto deixou Galvão numa “posição insustentável”, e a demissão foi um desfecho natural. Mas ele não se arrepende. “A minha acção serviu primeiro para preservar a ciência brasileira, a soberania da ciência brasileira, no sentido em que os dados científicos não podem em nenhum país do mundo ser sujeitos a ideologias políticas. A segunda coisa foi preservar o INPE, que é uma grande instituição, um sistema que tem feito o Brasil ser muito respeitado na preservação da Amazónia”, disse Galvão ao PÚBLICO, por telefone.

O Governo nomeou esta semana o militar Darcton Policarpo Damião, da Força Aérea, director interino do INPE. Na sua primeira aparição pública manifestou dúvidas sobre o aquecimento global. “Estudo o assunto, mas não é a minha praia”, disse ao jornal O Globo.

Na origem do diferendo com Bolsonaro esteve a divulgação dos dados sobre desflorestação do INPE que mostravam um aumento do ritmo da destruição da floresta amazónica desde que o novo Governo tomou posse, em Janeiro. Galvão diz compreender as críticas do executivo em relação à forma como os dados foram apresentados pela imprensa. Mas rejeitá-los pura e simplesmente, para além de acusar o director da instituição de estar “ao serviço de uma ONG [organização não-governamental] estrangeira”, não podia ser tolerado pelo físico.

O Deter e o Prodes

O INPE recorre a dois sistemas de monitorização para medir a desflorestação na Amazónia. Um deles é o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), que faz leituras rápidas da desflorestação e é usado como alerta para detectar a destruição de floresta logo nas fases iniciais. Estes foram os dados usados pelos jornais no mês passado.

O outro é o Programa de Monitoramento da Floresta Amazónica Brasileira por Satélite (Prodes), que é divulgado anualmente e fornece imagens de satélite com maior resolução, a partir das quais é possível determinar com rigor a área total desflorestada.

Galvão nota que “não é correcto” estabelecer comparações entre dados de desflorestação obtidos pelo Deter e garante que o INPE nunca o fez. “Para comparar as áreas desmatadas é necessário fazer uma consolidação anual, que faz uma média”, explica o cientista. A única informação que as imagens em tempo real podem dar com alguma certeza é de que “está a crescer o número de áreas onde se está a fazer desmatamento”, mas não quantifica a área. “Historicamente, nos últimos 13 anos, as áreas consolidadas são sempre superiores às que indicamos no sistema de alerta”, nota Galvão.

Mau ambiente

A rota de colisão entre o INPE e o Governo de Bolsonaro ficou desenhada praticamente desde o início. Galvão descreve meses de pouco diálogo e cooperação com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), consistentes com a baixa prioridade dada ao tema pelo executivo.

O INPE é um instituto de investigação científica na dependência do Ministério da Ciência e Tecnologia, com várias décadas de experiência na monitorização da desflorestação da Amazónia através da análise de imagens obtidas por satélite: desde 1988 que o Prodes mede anualmente a desflorestação na região. Em 2013, o INPE criou o sistema de monitorização em tempo real para funcionar como um alerta para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pela fiscalização e punição de infracções ambientais.

“O Ibama quer saber onde tem de actuar, e esse alerta tem de ser rápido, porque a logística na Amazónia é extremamente complicada, pode-se demorar dias a chegar ao local que está a ser desmatado”, explica Galvão.

Desde que o Meio Ambiente ficou sob a alçada de Ricardo Salles, os alertas deixaram de ser ouvidos. Galvão passou os últimos meses a tentar encontrar formas de melhorar o diálogo e a cooperação com o ministério, em especial nos últimos meses, quando “os dados indicavam um aumento enorme do desmatamento”. Porém, a relação com Salles, que até estar no cargo nunca tinha visitado a Amazónia, foi sempre contenciosa. “Desde Janeiro que o ministro Ricardo Salles tem constantemente atacado os dados do INPE”, conta Galvão.

Em Dezembro, ainda antes de ocupar o cargo, Salles questionou a necessidade de monitorizar a desflorestação e noutras ocasiões sugeriu que o Governo poderia recorrer a outro sistema que não o do INPE.

Galvão não receia pelo futuro da monitorização da Amazónia, uma vez que existem vários sistemas que garantem que não venha a haver manipulação dos dados. “Hoje em dia se alguém mentir acerca de imagens de satélite será rapidamente ridicularizado”, afirma o cientista, que a partir de agora irá voltar a dar suas aulas na Universidade de São Paulo. E, confessa ao PÚBLICO, “seria muito agradável” regressar ao trabalho de investigação que desenvolvia em cooperação com o Instituto Superior Técnico, em Lisboa.