À espera de Agosto
Ser filho de emigrantes portugueses é nascer sob o signo de Telémaco. Esperar é o nosso verbo. Como uma das milhares de crianças deixadas em Portugal com os avós, fui embalado à distância, durante anos, por histórias vindas de Troias longínquas. Agora que chega Agosto, o eterno mês do regresso, a narrativa ganha um novo capítulo.
Sempre achei revelador que a espera de Telémaco, na Odisseia, fosse considerada menor, em detrimento da de Penélope; como se a ignorância quanto ao que perdeu o tornasse incapaz de reconhecer a ausência, que o amor filial fosse ignorado em prejuízo do conjugal. Como narra o poema épico de Homero, o filho de Odisseu nasceu pouco antes de o herói partir para a Guerra de Troia. Ainda assim, durante 20 anos aguardou, com a mãe, o retorno do pai.
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Sempre achei revelador que a espera de Telémaco, na Odisseia, fosse considerada menor, em detrimento da de Penélope; como se a ignorância quanto ao que perdeu o tornasse incapaz de reconhecer a ausência, que o amor filial fosse ignorado em prejuízo do conjugal. Como narra o poema épico de Homero, o filho de Odisseu nasceu pouco antes de o herói partir para a Guerra de Troia. Ainda assim, durante 20 anos aguardou, com a mãe, o retorno do pai.
Pouco depois de eu ter nascido, o meu pai emigrou para a Suíça, com a promessa de logo regressar; foi trabalhar na construção civil. Três décadas depois, ainda lá está. “Já só faltam dois anos para a pré-reforma”, disse-me há pouco tempo. Nas suas palavras, ouço o contra-relógio de uma vida adiada. Como um presidiário que sabe o dia em que terminará a sentença, suspeito que ele tenha receio de não se adaptar à liberdade, sem patrões nem horários. “Como eu queria ser o filho feliz de um homem a quem a velhice atingisse no meio das suas posses!”, roga Telémaco.
Estava prestes a entrar para a escola primária, quando os meus pais — ambos oriundos de famílias pobres e numerosas de uma cidade de Trás-os-Montes — decidiram emigrar juntos para Suíça; foram trabalhar para um restaurante no cantão alemão, perto da cidade de Zug. Nos álbuns de família, sobrevivem muitas fotografias de dois jovens adultos, mais novos do que eu mas já pais, com óculos de sol, kispos a imitar o boneco da Michelin, rodeados de neve. Na minha infância, estas imagens, que chegavam de mês a mês pelo correio, fundiram-se-me de tal forma na consciência que, durante anos a fio, sonhei que eles morriam numa avalancha. Bem, talvez não seja apenas sonhar: desejar também será correcto. A partida dos meus pais deixou-me uma profunda impressão de orfandade existencial. Ao desejar a morte deles, compreendi muitos anos mais tarde, procurava no real uma correspondência para o que sentia.
Os patrões dos meus pais, um casal germano-austríaco com tendências déspotas, tentaram convencê-los a levar-me, mas eles recusaram. A minha permanência em Portugal era a garantia de não caírem na tentação e ficarem fora ad eternum. Enganaram-se.
Como Odisseu, os meus progenitores partiram para a guerra com a ideia de que, depois de cessado o conflito (ter dinheiro para comprar casa, na narrativa deles), iriam regressar. Terminada a contenda, tal como o herói de Homero, ainda tiveram de enfrentar outros desafios: comprar carro, fazer poupanças e, acima de tudo, pôr-me na faculdade. Por vezes, em conversa com amigos, digo que os meus pais são os Medicci, os meus mecenas — um elogio honesto, pois não me imagino a tomar as mesmas decisões deles em prol de alguma descendência.
À semelhança de milhares de filhos de emigrantes portugueses, quando os meus pais partiram fui delegado aos meus avós maternos e aos cinco irmãos da minha mãe. Esperar tornou-se, por isso, um verbo autobiográfico. A minha identidade foi construída num olhar em permanência para uma Troia helvética, que vim a visitar várias vezes. Mesmo hoje, com 30 anos, quando chega Agosto, continuo à espera.
Tempo sem ponteiros
A espera não é um estado permanente. Por vezes, esgota-se, é entrelaçada por pequenos períodos mortos. Passado algum tempo, renova-se. Nos 20 anos que Odisseu esteve ausente de Ítaca, houve, certamente, momentos em que Telémaco e Penélope se esqueceram dele. Na verdade, é Atena, a “deusa de olhos garços”, quem revela a Telémaco, logo no início da Odisseia, que o pai ainda está vivo. Até então, o filho de Odisseu aparenta lamuriar-se de uma ausência que só lhe complica a vida e o impede de ser emancipado.
Eis como Atena encontra Telémaco quando lhe vai transmitir a boa-nova do regresso do pai: “Estava sentado… / imaginando no seu espírito o nobre pai chegando/ para causar a dispersão dos pretendentes. / E ele próprio teria honra e seria senhor dos seus haveres.”
Ainda hoje me esqueço regularmente dos meus pais. Por culpa da distância física, e também íntima, vivemos vidas apartadas. Com eles, partilho poucos traços de personalidade, influências culturais ou políticas. Há uma proximidade que foi quebrada quando os dois partiram pela primeira vez para a Suíça, e que nunca foi recuperada; não me queixo, só constato. Falo com eles quase todos os dias via telefone ou Internet, mas um pedaço da vida deles é-me verdadeiramente estrangeiro.
Após uma temporada de cinco anos no restaurante nos arredores de Zug, eles regressaram. Eu tinha acabado de entrar no 2.º ciclo. O retorno dos meus pais, todavia, pôs em evidência o quanto lhes faltava: os mesmos trabalhos em dois países diferentes eram a diferença entre sobreviver e conseguir poupar. Fazer limpezas ou poder pagar a alguém que as faça. Passados três anos, o meu pai voltou a emigrar. Desta feita, partiu sozinho para Chiasso, cidade suíça na fronteira com Itália, não muito longe de uma aldeia onde Hermann Hesse viveu durante 20 anos; a minha mãe, por sua vez, passou a viver entre “lá” e “cá”.
Até aos 18, não vivi mais de três anos seguidos com os meus progenitores. (Não contabilizo o período dos zero aos cinco, dele não tenho quase memórias.) Os meus pais, sobretudo a minha mãe, negarão estas contas, por pudor; o mais provável é que ela as tresleia como uma acusação de abandono. Sou pouco dado a dilemas morais. Partir não foi mais do que uma escolha.
Léxico familiar
Como uma criança educada por uma tribo, durante a adolescência circulei muitas casas. A ideia de comunidade diz-me mais que família. É uma das características que tenho em comum com outros filhos de Odisseu.
Nos últimos 30 anos, cruzei-me com muitos. Em conversa e por observação, fui-me apercebendo de uma certa narrativa partilhada. Todos fomos, de forma consciente ou não, tratados como “investimentos a longo-prazo”, que deviam obrigatoriamente dar grandes lucros: subir na hierarquia social, ter bons empregos, mais oportunidades. E tínhamos também a obrigação, nos períodos de férias, de estar disponíveis para voar (ou ir de autocarro) até qualquer que fosse o destino onde estivessem os nossos pais. Enquanto apêndices familiares, era uma cláusula irrevogável.
Em regra, tínhamos mais dinheiro que muitos dos nossos amigos, mas não sabíamos bem como o gerir ou gastar. Muitos frequentámos colégios privados, estabelecimentos de ensino que só a elite local podia pagar. Porém, de todas as similaridades, a que me marcou mais foi sempre a fluidez da nossa pátria linguística. Mesmo a viver em Portugal, os idiomas dos países para onde os nossos pais emigraram faziam parte do nosso léxico. (Talvez seja mesmo o traço mais europeu dos filhos de Odisseu.) No meu caso, o alemão surge nas discussões, o francês usa-se para falar de comida e o italiano sussurra a doença.
As interjeições e gritos da minha infância poderiam ter vindo directamente do Terceiro Reich. Expressões como “Schnell” (rápido) ou “Halt die Klappe” (boca fechada) eram cuspidas em tom militar pelos meus pais (reproduzindo o tratamento abusivo de que eram alvo pelos patrões). O francês tempera muitas das minhas conversas familiares sobre comida. É comum ligar a uma tia emigrada (também na Suíça, mas no cantão francês) e trocar receitas, o que dá azo a frases como: “Fatias os apricots e depois metes o canard no forno.”
Das três línguas, o italiano é aquela com a qual tenho mais laços pessoais. Na minha primeira ida à Suíça, caí com uma pneumonia. Foi nas férias da Páscoa do 8.º ano. Todas as poupanças que ele havia feito para aquela visita foram-se em consultas e medicamentos. Em 15 dias, passei oito de cama, a tossir sangue, cheio de febre. Durante aquele tempo semiconsciente, consumi doses cavalares de Cartoon Network dobrado em italiano. Foi assim que a língua de Dante, cantada numa das variações dos vilões da série animada Dexter, se verteu nos meus ouvidos.
Sublimar a memória
Enquanto filho de emigrantes, o mercado da saudade repugna-me. Não sei se se trata de uma particularidade minha ou se a partilho com outros filhos de Odisseu. Porquê? Porque o saudosismo do “querido mês de Agosto” é a forma de sublimação da grande maioria dos emigrantes que conheço. Onde muitos lêem nostalgia, eu vejo ansiedade e depressão. Pensar em permanência sobre um futuro regresso é entrar num estado de agonia; um mês por ano no paraíso não basta.
Quando chega o Verão, incomoda-me, em particular, a forma básica como os noticiários retratam a emigração portuguesa. Com uma banda sonora de música pimba, vendem lágrimas e uma saudade empacotada para consumo do povo. Tratam o plural como singular. Todos muito crentes, todos muito avecs, todos muito trabalhadores, todos muito gabarolas. Mas não há só um tipo de emigrante: basta olhar para microcosmo da minha família.
Tenho os meus pais que caem no lugar-comum dos emigrantes sovinas, cuja estadia no estrangeiro nunca foi alvo de fruição; durante o primeiro ano na Suíça, jamais foram tomar um café fora, contam eles, como quem carrega uma medalha ao peito.
Tenho tios cujo trabalho ao longo dos anos serviu apenas para financiar a compra de bólides novos, o que os tornou motivo de desdém familiar. Chegados à reforma, abdicam de comprar casa em Portugal e continuam a viver fora, para ajudar e fazer companhia aos filhos e netos.
Tenho tios que foram lesados da queda do Banco Espírito Santo. Já haviam poupado suficiente para investir e fazem vida de classe média-alta na Suíça, sem sequer se aperceberem disso.
Tenho uma tia que trabalha como governanta para um magnata da indústria aeronáutica, cujas obrigações mensais passam por puxar lustro a esculturas de Salvador Dalí.
Tenho um tio que foi jardineiro do piloto de Fórmula 1 Michael Schumacher e motorista da maior produtora de azeite de Israel. De uma das últimas vezes que o visitei, levou-me a um hotel na margem do lago de Genebra para um café. Descobri depois que era o mesmo estabelecimento onde ficara alojado Nabokov, entre 1961 e 1977.
Tenho também família emigrante abertamente preconceituosa para com emigrantes portugueses; gabam-se de não se misturarem com os outros apátridas nos tradicionais cafés lusos.
Tenho família racista para com os emigrantes de Leste que nos últimos anos entraram na Suíça e França porque aceitam fazer os mesmos trabalhos que eles por menos dinheiro. Escapa-lhes a ironia de que o mesmo terá sido dito no passado sobre os trabalhadores portugueses.
Tenho tios que ficaram irritados quando apareceram as companhias aéreas de baixo custo, pois deixaram de ser dos poucos a regressar a Portugal de avião. No extremo oposto, há os que têm como profissão transportar emigrantes de autocarro para a França, Suíça, Alemanha ou Luxemburgo e o fazem há mais de 30 anos.
Não tenho a pretensão de conhecer todas as facetas dos emigrantes portugueses. Mas a verdade é que os conheço em mais dimensões do que as retratadas à hora de jantar nas televisões portuguesas. A última coisa que quero é que as lágrimas de um Odisseu sejam mero complemento da sobremesa dos espectadores.
O retorno
Nasci sob o signo de filho de Odisseu; continuo a viver debaixo do mesmo astro. Na próxima semana, vou de férias com os meus pais. Tenho 30 anos e continuo à espera — não como na adolescência, mas o 8.º mês do calendário ainda é uma constante na minha biografia. Vivo longe da minha terra natal e é limitado o número de dias por ano que o meu pai está em Portugal, logo é a única forma de passarmos algum tempo juntos. Em 2018, na melhor das hipóteses, terei estado menos de dez dias com o meu pai, 20 com a minha mãe.
Acontece que, mesmo depois do regresso de Odisseu, Telémaco nunca deixou de ser o filho do herói da Guerra de Troia. Enquanto a maior parte dos meus amigos tem viagens marcadas para um dos muitos destinos exóticos em voga, eu e, segundo sei, os filhos de Odisseu mantemos uma rotina do passado.
Há alguns dias, meu pai aterrou no aeroporto Francisco Sá Carneiro. Daí rumou à minha terra natal, para se encontrar com a minha mãe. Daqui a alguns dias, os dois farão malas e virão ter comigo e com a minha companheira à aldeia onde moramos na Beira Baixa. Daqui, partiremos juntos.
Por uma semana, voltarei a ser filho; é impossível escapar ao ascendente na presença dos pais, sejam as relações mais próximas ou distantes. Diante do mar, numa esplanada ou talvez à mesa de jantar, ficarei a conhecer as suas últimas façanhas em terras helvéticas, o tempo que marca o contra-relógio do regresso. Contarei muito pouco da minha vida. Não admitirei que tive saudades. Telémaco também nunca o fez.