Alimentação: muito sabemos, mas o que comemos?

Nunca se falou tanto de alimentação como nos dias de hoje, mas isso não é sinónimo de que se coma bem ou que se seja saudável. O PÚBLICO ouviu alguns especialistas que dão pistas sobre o presente e o futuro.

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Mario Lopes Pereira

Os portugueses comem carne a mais e frutas e vegetais a menos. É o que dizem os inquéritos acerca da alimentação. Os padrões dos portugueses afastam-se daqueles que constituem a recomendada dieta mediterrânica e, em geral, grande parte da população consome sal, gorduras saturadas e açúcar acima dos níveis recomendados. O impacto dos hábitos alimentares foi tema do último debate do Fronteiras XXI, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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Os portugueses comem carne a mais e frutas e vegetais a menos. É o que dizem os inquéritos acerca da alimentação. Os padrões dos portugueses afastam-se daqueles que constituem a recomendada dieta mediterrânica e, em geral, grande parte da população consome sal, gorduras saturadas e açúcar acima dos níveis recomendados. O impacto dos hábitos alimentares foi tema do último debate do Fronteiras XXI, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Porque não se come melhor? Uma coisa é certa, refere Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, antes de responder à pergunta: “Nunca se falou tanto na questão da alimentação e da sua relação com a saúde. Nunca se falou tanto que Portugal está a perder anos de vida saudável, devido aos maus hábitos alimentares. Os vários relatórios da Direcção-Geral da Saúde apontam nesse sentido.” Mais: “Temos intensificado erros alimentares.” Os portugueses deixam-se mergulhar num “conjunto de mitos, falsos conceitos, modas, dificuldade de percepção em relação àquilo que é a verdadeira mensagem da alimentação saudável”, lamenta.

“Há aqui um grande contra-senso”, reforça Marta Wilton Vasconcelos, professora na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. “Se, por um lado, estamos mais conscientes da pegada ambiental daquilo que comemos, [por outro,] não estamos dispostos a alterar a nossa dieta”, refere. Por isso, é preciso “capacitar” os cidadãos para fazerem escolhas saudáveis, defende Alexandra Bento, que reconhece que os ambientes são “pouco facilitadores” dessas escolhas. É importante trabalhar “todos espaços por onde andamos para fazermos as nossas escolhas alimentares”. Estas são influenciadas por três factores determinantes – a proximidade, o paladar e o custo dos alimentos, enumera.

E quem pode ajudar a fazer estas escolhas? Para Alexandra Bento, as autarquias têm um papel na transformação dos ambientes – de obsogénicos (que promovem a obesidade) para salutogénicos (os da dieta saudável). Mas não só. Também a nível nacional deveria haver um plano. A bastonária aplaude as medidas que têm sido tomadas ultimamente, pelo Governo, tais como a limitação de publicidade dirigida a menores de 16 anos por preocupação quanto aos teores elevados de açúcar, sal, gorduras saturadas ou transformadas.

“Se o país continuar a debater as questões da alimentação, então o que imagino é que as prateleiras dos supermercados vão ter uma panóplia de produtos alimentares mais saudáveis”, calcula a bastonária. “Vamos ter certamente pequenas mercearias, pequenas frutarias, com negócios a crescer neste sentido, na lógica do saudável. Há tendência porque também há demanda.”

Se é certo que há procura, também é certo que nem todos estão dispostos a pagar para fazer uma alimentação mais equilibrada. “Quando vamos ao supermercado, aquilo que nos move ainda é o preço”, ou seja, as pessoas até podem ter consciência das opções mais saudáveis e sustentáveis, mas estas, “muitas vezes, são um pouco mais dispendiosas” e “uma grande fatia [dos consumidores], na altura de pagar, pensa duas vezes”, refere Marta Vasconcelos. Quanto ao custo dos alimentos que apresentam opções mais saudáveis (incluindo, alternativas vegetais à carne, mas não só), a professora calcula que à medida que a procura aumenta, os preços poderão decrescer. 

Ross Dawson, especialista no futuro do mercado de consumo, que passou por Lisboa em Outubro de 2018 para participar na conferência anual do Food & Nutrition Awards, tem outra perspectiva: “Há uma parte da população (a aumentar, mas ainda assim uma minoria) que está muito focada na sua saúde, mas há muitas pessoas que não estão a mudar a sua dieta”, começa por dizer ao PÚBLICO. “Acho mais provável que esta polarização continue, em parte por questões de custos. Vamos ver um fosso cada vez maior no custo — entre o básico fast food e as comidas de maior qualidade”, comenta. Ao contrário do que acontece noutros sectores, em que “a tecnologia começa a ser mais barata quando se produz em escala”, no caso da comida “não fica assim tão mais barato quando se produz dez vezes mais”.

Para Marta Vasconcelos, independentemente dos custos, há espaço para se “reequacionar” aquilo que o consumidor está disposto a pagar para consumir de forma mais saudável. “Não é só o produto ficar mais barato, é também o consumidor ter a consciência que, às vezes, é justo pagar um bocadinho mais por um alimento que seja mais saudável e sustentável.” 

A tecnologia também pode ter um papel importante. Além dos progressos na produção primária (por exemplo, com biofertilizantes mais ecológicos ou com culturas resistentes às alterações climáticas); na logística de transporte e alojamento dos alimentos; e no desenvolvimento de novos produtos (como maçãs que não acastanhem), poderá também ter impacto na experiência do consumidor, aponta a investigadora, actualmente integrada no projecto europeu Transition Paths to Sustainable Legume-based Systems in Europe (TRUE). A título de exemplo, imagina a criação de novos rótulos interactivos que mostrem a pegada ecológica ou a origem do alimento.

Ross Dawson aponta para o potencial da tecnologia — mais concretamente, a inteligência artificial e o tratamento de dados — para “começar a entender o que é que muda o comportamento de alguém”, no sentido da escolha de uma alimentação mais saudável. “Se virmos o que muitas pessoas estão a comer, se lhes dermos montes de coisas que poderão [contribuir para] mudar o seu comportamento (ler algo, ver televisão, apresentar embalagens diferentes)”, será possível observar como determinados tipos de personalidade respondem a diferentes estímulos, exemplifica.

O que dizem as tendências alimentares

“A tendência para reduzir a quantidade de carne e aumentar a de legumes é saudável. Mas se vou retirando alimentos de proveniência animal até à exaustão (ovos, produtos lácteos), estou a caminhar para uma tendência cada vez mais restritiva, que, em última instância pode não ser saudável”, alerta a bastonária. “A alimentação saudável é aquela em que não é preciso recorrer a suplementos”, recorda.

E nem todas as tendências alimentares são boas para a saúde do planeta. “Se a população mundial decidisse ser vegana, acabávamos por ter grande dificuldade em termos de sustentabilidade. Aí como conseguiríamos assegurar a saúde?”, pergunta a bastonária. Se, por um lado, mais de 820 milhões de pessoas no mundo estão subnutridas e mais de dois mil milhões têm deficiências de micronutrientes; por outro, a produção alimentar é responsável por 30% das emissões dos gases que contribuem para o efeito de estufa e 70% do uso de água doce, tornando-se assim a maior causa das mudanças ambientais, diz um estudo publicado no The Lancet no início do ano. Um outro, de 2016, que envolve seis universidades norte-americanas, calculou o impacto de dez dietas, com base nos terrenos agrícolas norte-americanos, e concluiu que a lactovegetariana seria a que alimentaria um maior número de pessoas; assim como dietas com pequenas quantidades de carne demonstram também melhores resultados do que uma dieta vegan. Em contrapartida, a dieta actual — com maior consumo de carne, gordura e açúcares — foi a que apresentou piores resultados.

Em relação a tendências como o consumo de produtos sem glúten ou sem lactose, Alexandra Bento é mais peremptória: “As tendências de sem glúten são um mito e um falso conceito. Se ganha dimensão, temos de actuar no sentido de esclarecer.” Para a endocrinologista Isabel do Carmo “é uma moda”, ainda que haja pessoas diagnosticadas com doença celíaca; não é o caso de todos os que evitam comer alimentos sem glúten. “Os estudos que existem, a longo prazo, são retrospectivos”, diz, apontando para o relatório Long term gluten consumption in adults without celiac disease and risk of coronary heart disease: prospective cohort study, publicado em 2017, que conclui que “evitar o glúten pode resultar num consumo reduzido de cereais integrais, o que pode afectar o risco cardiovascular”.

“Em relação à lactose, é também uma moda”, continua a especialista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Há pessoas que têm falta de lactose, outras não têm e estão a tirar o leite e a substituí-lo por bebidas vegetais — algumas são quase água com açúcar”, alerta. Quando retiramos o leite, há que consumir alimentos ricos em cálcio, avisa Alexandra Bento. 

Outras tendências envolvem percentagens muito pequenas da população — “tão pequena que [os estudos] não conseguem tirar resultados estatisticamente significativos”. Em relação às consequências a longo prazo de uma dieta vegetariana, os estudos apontam para os benefícios de saúde, sobretudo no que toca à prevenção de doenças cardiovasculares, diz Isabel do Carmo, assinalando que em todos eles é colocada a questão da necessidade de suplementação de vitaminas. “Quando se fala em ‘modas’, algumas delas podem ter baixo risco ou até serem isentas de risco, mas também há outras que podem ser muito perigosas”, conclui Alexandra Bento. 

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