Cartas a ex-namorados obscuros
À Vanessa, apetece-lhe agora escrever cartas aos ex-namorados obscuros. Chamar ex-namorados é capaz de ser exagerado. A gajos que conheceu, de quem gostou minimamente, mas nunca saíram de uma certa obscuridade.
Da minha secretária vejo o rio Tejo, barcos, guindastes e contentores. A vista para o porto é um tranquilizante e serve como mindfulness, que me perdoe quem sabe a sério o que é o mindfulness que deve ser uma coisa excelente. Mas focar-me ali naquele contentor que diz Maersk parece uma bela aproximação a alguma paz de espírito. Neste preciso momento em que estou a achar que a vida é bastante agradável, o telemóvel toca. Era naturalmente a Vanessa senão eu nem falaria disto. Do telefonema, digo.
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Da minha secretária vejo o rio Tejo, barcos, guindastes e contentores. A vista para o porto é um tranquilizante e serve como mindfulness, que me perdoe quem sabe a sério o que é o mindfulness que deve ser uma coisa excelente. Mas focar-me ali naquele contentor que diz Maersk parece uma bela aproximação a alguma paz de espírito. Neste preciso momento em que estou a achar que a vida é bastante agradável, o telemóvel toca. Era naturalmente a Vanessa senão eu nem falaria disto. Do telefonema, digo.
— Onde estás?
A malfadada pergunta que nasceu com os telemóveis. Foi aqui que começou a invasão de privacidade antes de percebermos que os gigantes das tecnológicas ficavam com todos os nossos dados. Toda a gente começou a achar normal perguntar ao interlocutor onde ele estava e daí a contar tudo ao Facebook foi um instante.
— A trabalhar. A olhar para os contentores.
— Estás a trabalhar ou a olhar para os contentores?
— As duas coisas. E tu? ‘Tás boa?
— Mais ou menos.
Em Portugal as pessoas geralmente estavam “mais ou menos”, tirando a que estavam “óptimas” a fingir.
A Vanessa queria um conselho:
— Estou a levar seriamente a peito a ideia de escrever cartas a toda a gente, como o gajo desse livro que ontem me leste.
Era o Herzog, do Saul Bellow.
— A toda a gente mesmo?
— A muita gente. A pessoas a quem me apetece dizer coisas. Não sei bem por onde começar. Se pelos homens públicos se pelos meus ex-namorados obscuros. Começo por onde? Estou mais tentada a começar por escrever aos ex-namorados. Àqueles a quem acho que ficou algo por dizer.
— Sinceramente não sei. Se ficou por dizer é porque não tinha interesse nenhum. Não é uma ideia inútil? Não tens nada melhor para fazer? A ideia de ir para o Tinder não era mais agradável?
— Vou guardar o Tinder para a rentrée. Gosto de começar coisas novas na rentrée. Aliás, sempre embirrei com amores de Verão. Agora, apetece-me mais escrever cartas aos meus ex-namorados obscuros. Chamar ex-namorados é capaz de ser exagerado. A gajos que conheci e de quem gostei minimamente e nunca saíram de uma certa obscuridade.
Eu não estava a ver o interesse da empreitada. O passado é um país esquisito. A ideia de encarar obscuridades parecia-me um filme de terror, uma péssima alternativa à magnífica luz do porto de Lisboa que tenho aqui mesmo ao lado.
— Olha, manda-me o teu mail. Estou aqui a acabar uma carta para o Eduardo. Vou começar pelo Eduardo. Achas bem que comece pelo Eduardo?
— Acho o que tu quiseres, Vanessa. (continua)