Dentro da história ou fora dela, as mulheres também são parte do rock

O documentário Ela é uma Música, de Francisca Marvão, leva ao festival Mimo, este sábado, algumas das mulheres da cena rock portuguesa de diferentes gerações.

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Ana Da Silva, das The Raincoats, personagem incontornável desta história DR

Em 1960, Zurita de Oliveira compunha e lançava a canção O Bonitão do rock. Dois minutos de rock’n’roll com ginga yé-yé e voz radiofónica, daquela que pode ser considerada a mãe do rock português, apesar de quase sempre os pais (como Daniel Bacelar e Os Conchas) ficarem com todos os créditos. Foi mais ou menos pela mesma altura que Maria Teresa Horta, escritora e figura-chave do feminismo em Portugal, viu o seu pai a partir um disco de rock à sua frente, essa “coisa nojenta” e “pornográfica” que “desviava as mulheres” (“ouve Beethoven”, atirava-lhe com indignação).

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Em 1960, Zurita de Oliveira compunha e lançava a canção O Bonitão do rock. Dois minutos de rock’n’roll com ginga yé-yé e voz radiofónica, daquela que pode ser considerada a mãe do rock português, apesar de quase sempre os pais (como Daniel Bacelar e Os Conchas) ficarem com todos os créditos. Foi mais ou menos pela mesma altura que Maria Teresa Horta, escritora e figura-chave do feminismo em Portugal, viu o seu pai a partir um disco de rock à sua frente, essa “coisa nojenta” e “pornográfica” que “desviava as mulheres” (“ouve Beethoven”, atirava-lhe com indignação).

Estas histórias – esquecidas, ignoradas ou pouco conhecidas – são desenterradas em Ela é uma Música, documentário de Francisca Marvão, 35 anos, sobre as mulheres do rock português. Estreado em Maio no IndieLisboa, chega agora ao festival Mimo, em Amarante. É exibido às 18h, no Cinema Teixeira de Pascoaes, neste sábado em que há concertos de Criolo, Seun Kuti & Egypt ou Delia Fischer.

“Onde estão as mulheres no rock?” foi a pergunta que começou a ocupar a cabeça de Francisca Marvão em 2015 e que acabou por servir de ignição para esta sua primeira longa-metragem. “Além de ir a concertos, nessa altura estava a ver bastantes documentários ligados à música, alguns deles portugueses, e eram sempre homens, nunca vias uma mulher. Ou se aparecia uma era só numa nota de rodapé”, recorda a realizadora, que contou com a colaboração de Helena Fagundes, baterista das Clementine, e de Rita Grácio, investigadora (aqui consultora de conteúdos) cuja tese de doutoramento sobre mulheres no panorama do rock nacional foi um importante ponto de partid.

Ao longo de quase cinco anos, Francisca levava a câmara de filmar quando saía de casa para ver concertos. Através dela, registou nomes como Calcutá, Savage Ohms, The Raincoats (com a portuguesa Ana da Silva), Anarchicks, Clementine, Ninaz, Decibélicas ou as Panelas Depressão. Quis dar protagonismo a bandas compostas apenas por mulheres e a cantoras-compositoras, incluindo também mulheres em bandas mistas, como Cláudia Guerreiro, dos Linda Martini, e Beatriz Rodrigues, dos Dirty Coal Train. “Para mim a Beatriz é das maiores rockeiras de Portugal e acho que não há uma pessoa que não reaja a ela”, aponta Francisca.

Para lá de imagens de concertos, ensaios, gravações e episódios da vida quotidiana destas mulheres – praticamente todas têm uma profissão fora da música para se conseguirem sustentar, da apicultura à veterinária –, a estrutura do filme está muito ancorada nas conversas à mesa do café. Nelas vemos Ana Deus com Xana dos Rádio Macau, o reencontro entre as incontornáveis Adelaide Ferreira e Lena D’Água (só elas davam um filme), Cláudia Guerreiro com Sónia Cabrita (As Gaijas/ Pickle Puss), Ana da Silva com Shelley Barradas (Clementine, Vaiapraia e As Rainhas do Baile) e Ana Farinha (Candy Diaz, ex-Les Baton Rouge e Women Non Stop) ou Ondina Pires (Pop Dell’Arte, The Great Lesbian Show) com Luís Futre, ligado à Groovie Records e um dos principais respigadores do rock português.

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A estrutura do filme está muito ancorada em conversas de café DR

“Não quis fazer entrevistas, isso distancia o espectador e as pessoas dizem sempre o que é suposto dizer”, explica Francisca Marvão, que tentou afastar-se das convenções do género documental e apostar numa narrativa mais livre. “Pensei antes em diálogos, por causa do filme Coffee and Cigarettes do [Jim] Jarmusch, numa de juntar pessoas e ver o que acontece.” Apesar de Ela é uma Música reunir artistas de diferentes gerações, dos 18 aos 70 anos, há ausências de peso nas conversas: as obrigatórias Damas Rock, Anabela Duarte de Mler Ife Dada e Manuela Azevedo dos Clã, ou mesmo Raquel Ralha e Selma Uamusse, que passaram pelos WrayGunn. Além de Midus Guerreiro dos Roquivários e das Pega Monstro (agora em pausa), de quem Francisca andou atrás, mas sem sucesso.

As Pega Monstro aparecem mais para o final do filme a tocar ao vivo, mas muito brevemente e sem contexto – e fica a sensação de que falta trabalho de contextualização no documentário e uma composição menos retalhada e desarrumada. Ainda assim, é um bom início de conversa. E um documento necessário para que o cânone e a história do rock português não sejam contados de forma incompleta, sempre pelos mesmos e com os mesmos. Francisca não quis fazer um filme activamente feminista, mas sabe que é “inevitável” a conversa chegar aí. “Este filme não é só sobre música. Fala sobre questões de género, sobre questões sociais, mas sem levantar bandeiras. [As artistas] falam por si.”

Os papéis e os estereótipos de género, os comentários sexistas (exemplos: “os homens acham muito mais piada a uma mulher bonita em palco do que a um homem” e “se calhar é porque as guitarras estragam os dedos”, proferiu há uns tempos o promotor Álvaro Covões a propósito da falta de mulheres artistas nos cartazes dos festivais), o escrutínio a que são sujeitas, a questão da maternidade, os técnicos de som machistas e paternalistas; tudo isso vai surgindo nas conversas entre elas, ou mesmo subtilmente em algumas filmagens.

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As Clementine DR

O próprio testemunho, em áudio, de Maria Teresa Horta, com a performance da artista Aurora Pinho como pano de fundo (“escolhi a Aurora porque para mim ela é a representação da desobediência de que a Maria Teresa fala”, nota Francisca), e o final do documentário, com mais de uma dezena de mulheres a tocarem juntas, entre uma interpretação de poemas de Maria Teresa Horta, são momentos que trazem necessariamente à tona a questão do feminismo. “Fiz este filme porque senti que havia uma lacuna, mas agora acho que é preciso em tudo, não só na música”, diz a realizadora, que a meio do projecto criou a sua própria banda, as Matriarca Paralítica.

Depois da passagem pelo Mimo, Ela é uma Música vai ser apresentado dia 17 de Agosto na comunidade Moinho, em Silvalde, freguesia de Espinho, onde vivem algumas das Panelas Depressão, e em Setembro em Valada, local e dia a confirmar. Estas duas datas contam também com concertos de bandas que colaboraram no filme – um dos objectivos de Francisca Marvão é estender o documentário para fora da tela e fazer uma digressão em vários formatos, com concertos, sessões DJ e/ou debates. Para 7 e 8 de Novembro, no Sabotage, em Lisboa, já está agendado um mini-festival com concertos de oito bandas, entre as quais Ela é uma Banda, que se formou a partir da cena final do filme. As mulheres do rock português têm menos visibilidade do que os homens, mas elas andam aí – e vão continuar a fazer barulho.