Lei dos metadados precipitou renúncia de juíza do Constitucional
Colegas de Clara Sottomayor reviam-se nas conclusões da magistrada, mas não com a comparação de violência doméstica com terrorismo.
A controversa lei dos metadados foi o que precipitou a renúncia da juíza Clara Sottomayor às funções de juíza no Tribunal Constitucional (TC).
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A controversa lei dos metadados foi o que precipitou a renúncia da juíza Clara Sottomayor às funções de juíza no Tribunal Constitucional (TC).
A magistrada estava incumbida de redigir o acórdão que iria determinar se o diploma que permite aos serviços secretos ter acesso a dados de comunicações, nomeadamente ao tráfego e à localização celular, respeitava ou não a lei fundamental. Ao que o PÚBLICO apurou, embora a maioria dos juízes se revisse nas conclusões a que chegou Clara Sottomayor não concordou com as considerações que esta fazia comparando violência doméstica e terrorismo.
Assumidamente feminista, Clara Sottomayor partilhou, de resto, na sua publicação mais recente no Facebook, um artigo que avança precisamente com a possibilidade de a violência contra mulheres e raparigas ser equiparável ao terrorismo.
A lei dos metadados foi a gota de água que fez transbordar o copo ao fim de três anos desta juíza no Constitucional.
A magistrada chegou ao Tribunal Constitucional em 2016, indicada pelo Bloco de Esquerda e com a concordância do PS. Os bloquistas entendiam que fazia falta no Palácio Ratton alguém com um conhecimento específico nesta área dos direitos, liberdades e garantias.
Porém, o seu relacionamento com os colegas foi-se deteriorando, a ponto de ter de mudar de secção mais de uma vez.
Durante 23 anos, Clara Sottomayor foi professora da Escola de Direito da Universidade Católica, no Porto, destacando-se na área de família. Foi também juíza social do Tribunal de Família e Menores do Porto. Em 2012 tornou-se a mais jovem magistrada a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, preenchendo uma vaga como jurista de mérito.
Deu muitas vezes publicamente a cara por causas como a criminalização da violência doméstica, o combate à pedofilia, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o combate à violência sexual. No ano passado, votou vencida contra o chumbo das normas de gestação de substituição pelo Tribunal Constitucional.
O PÚBLICO tentou falar com a juíza — que deverá regressar ao Supremo assim que haja quem a substitua —, mas sem sucesso. Também não foi possível obter declarações do presidente do tribunal, Manuel da Costa Andrade.
A nova lei que permite aos serviços de informações o acesso a dados de comunicações, os metadados, foi aprovada a 19 de Julho de 2017 pelo PS, CDS-PP e PSD, os votos contra do BE, PCP e PEV e a abstenção do PAN. A 14 Agosto de 2017, Marcelo promulgou-a, sublinhando o “consenso jurídico atingido” e a “relevância do regime em causa”.
Em Janeiro de 2018 BE, Verdes e PCP entregaram no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva deste diploma, que permite que agentes do SIS e do SIED acedam aos metadados “para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna e da prevenção de actos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada e no seu exclusivo âmbito”.
Contudo, tal como o PÚBLICO noticiou em Maio deste ano, os serviços de informação reunidos sobre a sigla SIRP [Sistema de Informações da República Portuguesa] já consultam, desde Março, à consulta de dados de tráfego e duração de comunicações, sem intervirem no conteúdo das chamadas. Isto apesar de o acórdão do Constitucional ainda estar por sair, mais de ano e meio depois dos juízes terem sido chamados a pronunciar-se.