Quando o turismo rouba a inocência (e a identidade) de uma tribo no Pacífico

Em Vanuatu, em pleno Oceano Pacífico, uma tribo tenta manter a identidade e os costumes apesar das visitas turísticas — que também ajudam a melhorar a qualidade de vida. O fotógrafo português Vítor Queiroz esteve lá e mostra o que viu.

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Muitos poderão ainda não ter ouvido falar de Vanuatu, país localizado a cerca de três mil quilómetros a oeste da Austrália, em pleno Oceano Pacífico, mas o território que é composto por cerca de 80 ilhas foi, por exemplo, o local de rodagem de uma temporada do reality show Survivor, em 2004, e, 11 anos depois, do filme Tanna, nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Por este e outros motivos, Vítor Queiroz e Marta Maia, uma dupla de viajantes portugueses a residir em Sydney há vários anos, tinham Vanuatu, nomeadamente a ilha de Tanna, há muito na sua lista de locais a visitar. Ouviram falar de “uma tribo de estilo de vida quase intocado” a residir numa pequena aldeia e, há dois anos, decidiram ir vê-la com os próprios olhos. “Há duas gerações esta tribo ainda mantinha rituais canibais”, explica Vítor ao P3, em entrevista telefónica a partir de Sydney. “Quando se envolviam em disputas com tribos rivais, os habitantes da aldeia de Yakel comiam os seus inimigos, crendo que assim herdariam as suas forças.”

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©Vítor Queiroz

Depois de aterrarem no aeroporto de White Grass, na ilha do vulcão activo monte Yasur, os dois portugueses foram conduzidos através de um trilho verdejante até à aldeia por Jurek, um professor de física nuclear, “tão pálido quanto nu”, que diz habitar, sazonalmente, o local. Segundo Vítor, o polaco “ajuda os membros da tribo a não cederem a pressões exteriores”, embora ele mesmo tenha introduzido a aspirina e as sandálias Croc no quotidiano da população indígena.

À chegada, o casal foi apresentado pelo forasteiro ao chefe da aldeia, “o mais respeitado de Yakel”, que lhes deu as boas-vindas na sua língua nativa. Apesar do contacto directo com o líder, foi o polaco, envergando os trajes tradicionais da aldeia, quem lhes fez a visita guiada ao local, em inglês. “Jurek tem direito a vestir o traje tradicional que lhe foi oferecido como honra”, sublinha Vítor. “É ele quem traz informações do exterior e quem explica conceitos como o de religião e política ocidental à comunidade.”

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A "dança tradicional de boas-vindas" ©Vítor Queiroz

Só para turista ver?

Vítor e Marta não pagaram para visitar a aldeia, “apenas ao motorista” que os levou, garantiu ao P3 o fotógrafo português. Mas as visitas a Yakel, descrita por uma agência de turismo local como “a famosa e tradicional aldeia onde foi rodado o filme Tanna”, integram vários roteiros turísticos. “Faça uma viagem no tempo e conheça o modo de vida ancestral dos habitantes de Tanna”, refere, por exemplo, o site da agência tanna.travel, acrescentando que a tribo recebe o visitante de braços abertos e que os seus membros “ficarão felizes por mostrar como vivem e as dificuldades que enfrentam” no seu dia-a-dia, além de fazerem uma “dança tradicional para dar as boas-vindas”. Um guia encarrega-se da tradução para inglês ou francês a um preço que, dependendo do tamanho do grupo, é negociável. E, no local, os visitantes podem comprar peças de artesanato “por um óptimo preço”, como é possível ver através das imagens de Vítor. “A taxa de entrada está incluída no custo total da excursão”, refere a mesma agência.

Mas que montante é realmente canalizado para a tribo? E qual o custo, a curto e longo prazo, dessa transacção no seio da comunidade indígena? Quão autêntica é a realidade que é apresentada ao turista?

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"No final da tour que nos fizeram à aldeia, mostraram-nos uma banca com peças de artesanato que eles produzem (colares, pulseiras, etc.)", relata o fotógrafo Vítor Queiroz ©Vítor Queiroz

A convivência entre o turismo e as tribos de Vanuatu não é recente. John Connel, docente e investigador da Universidade de Sydney, autor do livro The Continuity of Custom? Tourist Perceptions of Authenticity in Yakel Village, Tanna, Vanuatu, lançado em 2007, conhece bem essa realidade. “As aldeias e os seus habitantes negoceiam o seu envolvimento com a indústria do turismo. A principal razão para a participação é o lucro, embora o orgulho nas tradições passadas desempenhe um papel importante”, refere Connel no corpo da obra. “Em Yakel, a receita que advém do turismo é superior à de qualquer outra fonte na aldeia”, acrescenta.

Em 2007, antes de o filme Tanna se ter estreado — e segundo dados recolhidos pelo investigador —, a receita da aldeia rondava os 20 mil dólares australianos anuais (cerca de 12.500 euros). Hoje a realidade será diferente. “As visitas de turistas parecem ser mais frequentes nos dias que correm, principalmente depois da estreia e projecção mundial do filme”, refere Vítor Queiroz. “No final da tour que nos fizeram à aldeia, mostraram-nos uma banca com peças de artesanato que eles produzem (colares, pulseiras, etc.) e o DVD do filme”, elucida.

Realidade? Ou uma ficção só o para turista ver? “Nós não vendemos os nossos costumes, apenas precisamos de alguma ajuda”, afiança o chefe de uma aldeia vizinha, Tabau, no livro do professor australiano, realçando que o dinheiro então angariado destinava-se a “construir aquedutos que beneficiavam toda a aldeia e não apenas aqueles que estão envolvidos nas performances​ para os turistas”. Mas tal não acontece em todas as aldeias. Connel afirma que muitos aldeãos deixaram de participar nestes espectáculos devido a disputas sobre o destino dos fundos auferidos. Questionavam-se: será que toda a aldeia deve ser favorecida quando apenas alguns se envolvem nestas actividades? 

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Muitos aldeãos deixam de participar nas actividades performativas por discordarem da forma como é distribuido o lucro ©Vítor Queiroz

Apesar de a maior parte dos turistas ter noção de que estará perante uma encenação — e que, no seu quotidiano, os membros destas tribos usam, efectivamente, calças e blusas e não saias de palha — existe, durante a visita guiada, transmissão de informação relevante acerca dos modos de vida e cultura ancestrais destas tribos. Ou seja, o lado didáctico está presente.

“Mais importante que o filme [Tanna] são os porcos”, refere o fotógrafo português. Nas palavras do guia polaco, “no mundo tribal, os porcos são como os Mercedes”, um símbolo de riqueza e poder. Outra curiosidade relembrada pelos portugueses. Alguns membros da tribo Yakel e a grande maioria da tribo Yaohnanen, no sul de Tanna, acreditam que o príncipe Filipe, marido da rainha Isabel II, é uma divindade. O Duque de Edimburgo sabe-o e já autorizou, por várias vezes, o envio de fotografias suas para a tribo. O seu aniversário, a 10 de Junho, é anualmente celebrado em diversas partes da ilha.