A pulsão linchadora
O medo e o ódio, sendo profundamente humanos e indiscutivelmente feios, não são, no entanto, crimes que justifiquem um linchamento pela turba de patrulheiros ideológicos e santíssimos inquisidores, sempre vigilantes e arrebatados, que explodem em alguns dos mais inesquecíveis westerns a preto e branco.
Jorge Luís Borges afirmou um dia que a literatura do século XX abandonou a epopeia, mas felizmente Hollywood deu-nos os westerns e salvou, com eles, a tradição do épico.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Jorge Luís Borges afirmou um dia que a literatura do século XX abandonou a epopeia, mas felizmente Hollywood deu-nos os westerns e salvou, com eles, a tradição do épico.
Nenhum outro género cinematográfico me cativou e deslumbrou tanto, da infância até hoje, como os chamados filmes de cowboys. De tal forma que não resisti a realizar, há quarenta anos, o meu western alentejano, adaptando o romance Cerromaior, do Manuel da Fonseca, que partilhava com Borges a ideia referida e, comigo, a paixão pelos filmes de cowboys: o seu conto “Amor Agreste” é um guião de western pronto a filmar.
Um dos temas que frequentemente explode nos filmes de cowboys, desde o início do cinema mudo até ao crepúsculo do género, é a pulsão linchadora. Não vou citar exemplos, porque eles são abundantes, mas todos recordamos turbas em fúria ululantemente embriagadas pelo ódio e pelo prazer de colectivamente fazerem justiça pelas próprias mãos.
Sobre essa “perversidade” humana escreveram-se textos e tratados para todos os gostos, desde o livro de Auguste Le Bom, publicado em 1895, Psicologia das massas, passando por A Turba, de H. L. Melcken, em 1918, por Psicologia das massas e análise do eu, de Freud, em 1921, e Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, em 1963, para citar apenas os títulos referidos por Leonardo Boff, no seu pequeno mas luminoso texto “Quanto de barbárie existe ainda dentro de nós?”, publicado em Maio de 2014, no seu blogue: um grito de protesto pelo linchamento “da inocente Fabiane Maria de Jesus, em Guarujá, no litoral paulista, confundida com uma sequestradora de crianças para efeito de magia negra, que foi literalmente estraçalhada e linchada por uma turba de indignados”.
Com o chamado “progresso histórico e civilizacional”, e à semelhança de outras humanas pulsões, irracionais e selvagens, a pulsão linchadora deslocou-se da pura e letal violência física, sempre colectiva, para a felizmente mais soft violência verbal, assanhada e sectária, revestida da correcção política do pensamento também sempre colectivo. Ambas brotam evidentemente da mesma fonte — a intolerância — e perseguem o mesmo objectivo: a eliminação ou a exclusão do dissidente, considerado um infame e desprezível ser a abater. Sumária e implacavelmente, aos berros, em volta da forca pública.
Há uma antiga anedota persa, sobre um homem feio, que conta o seguinte: um dia, um homem feio que nunca tinha visto um espelho encontrou um, a brilhar, à beira do seu caminho; pegou nele, olhou-o e deitou-o outra vez fora, dizendo: “Que horror, que feio! Não admira que o tenham deitado fora.”
À semelhança do homem feio da anedota persa, o que existe no racismo é uma tristíssima mistura de ignorância e mesquinhez, arrogância e soberba, egoísmo e crueldade, rancor e desprezo que não se enxerga a si própria. Tudo somado: medo e ódio. Que sendo profundamente humanos e indiscutivelmente feios, não são, no entanto, crimes que justifiquem um linchamento pela turba de patrulheiros ideológicos e santíssimos inquisidores, sempre vigilantes e arrebatados, que explodem em alguns dos mais inesquecíveis westerns a preto e branco.