O eufemismo do excesso ou o excesso dos eufemismos?
Segundo os moderados de agora, também Fátima Bonifácio se terá “excedido”. Só que isso não muda nada.
Anda por aí uma preocupação descabelada por parte de algumas pessoas, muitas delas pagas para opinarem nos jornais ou nas televisões, com o ser moderado, bem-comportado, bem-pensante, para que ninguém lhes chame radicais. Anti-radicalistas, portanto.
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Anda por aí uma preocupação descabelada por parte de algumas pessoas, muitas delas pagas para opinarem nos jornais ou nas televisões, com o ser moderado, bem-comportado, bem-pensante, para que ninguém lhes chame radicais. Anti-radicalistas, portanto.
Ouvi, com estes ouvidos que a terra há-de comer – como se diz na minha província alentejana –, que o racismo é uma opinião. Agressiva, mas opinião. O comentador que disse tal coisa – para além de mostrar desconhecimento da Constituição da República Portuguesa, dos tratados internacionais que vinculam o Estado Português e da lei penal portuguesa – já foi tido como radical. Moderou-se e se calhar estragou-se, do ponto de vista de quem possa ter apreciado o estilo.
Dou graças a Deus – eu, que nem ao nível das crenças nem das ideias posso ser tida como fazendo parte da cristandade – por não me identificar, há décadas, com nenhum dos partidos existentes no panorama político nacional, à esquerda ou à direita. Nem ao centro, moderado q.b., e que nem sei o que seja a não ser isso mesmo – uma paródia, a que pertencem quase todos os comentadores e colunistas que tenho ouvido, com algumas e muito honrosas excepções. Na minha opinião, claro.
Penso, até, que foram essa moderação, essa contenção, essa contemporização e espírito conciliador a razão por que os pides não responderam criminalmente por aquilo que fizeram, e que, depois disso, ninguém respondeu pela privação da liberdade de quatrocentas e tal pessoas, entre as quais eu, a 28 de Maio de 1975. Conciliou-se tudo, faziam todos parte da cristandade, nada de radicalismos, credo!
Mas que ao menos fiquem a saber que não perdoo. Não só não perdoo a quem me torturou e a quem me prendeu depois, como não perdoo a quem não os julgou por isso.
De ambas as vezes, houve quem falasse de “excessos”. Assim na tortura bárbara, quando o espancamento, programado e anunciado, me fez perder os sentidos e o pide que o tinha ordenado, o inspector do meu processo – Américo da Silva Carvalho –, entrou e o apelidou assim, de “excessivo”. Mais tarde, também apelidaram de “excessos” as prisões e os maus tratos de 1975. “Excessos”, disseram também os pretensamente moderados de então.
Segundo os moderados de agora, também Fátima Bonifácio se terá “excedido”. Só que isso não muda nada.
Tal como os outros sabiam que fizeram o que queriam fazer, os moderados de hoje sabem que no artigo “Podemos? Não, não podemos” a sua autora disse precisamente o que queria dizer, de forma deliberada, livre e consciente, como erudita e doutorada que é, em pleno uso das suas faculdades mentais.
Têm a mesma filosofia que aqueles que levaram o pide Óscar Cardoso à televisão e o trataram de igual para igual, como “Sr. Inspector”, ele que nunca tinha sido senão inspector da PIDE e criador dos Flechas em Angola. O mesmo pide que me aparecia nas longas noites do muito longo período de tortura do sono e se vangloriava de ter torturado Francisco Martins Rodrigues e Rui d’Espiney e me exibiu o isqueiro que tinha roubado a este, cerca de dez anos antes, durante a tortura. O único pide que ouvi vangloriar-se de ser um torcionário.
Para não ser acusada de querer exercer censura, terei também de concordar com o facto de os pides terem tido, em democracia, audiência – na televisão e não só – como normais cidadãos, sem contas a prestar? De lhes terem apertado a mão, coisa que nunca farei na vida, e de os terem tratado com deferência? Afinal, o que os pides foram dizer e dizem, quando lhes dão palco, é “a sua opinião”.
Ter estado presa no tempo da ditadura e ter sido submetida a torturas violentíssimas não me dá autoridade moral sobre qualquer outra pessoa. Embora o que pensava então e as ideias que defendia sejam, no essencial, as que defendo hoje – a liberdade, a igualdade, o anti-racismo e anti-xenofobia e o anti-colonialismo, tanto como o anti-fascismo.
Gostava de os ter visto ali e, se não tenho autoridade para dar lições de moral a ninguém, não as aceito, seja de quem for. E as minhas opiniões e tomadas de posição, neste como em muitos outros casos, não são pagas e esse é mais um motivo para serem livres e unicamente em conformidade com a minha consciência.
Também gostava que esses comentadores e cronistas, alguns deles com o curso de Direito, tal como eu – lembro-me, pelo menos, de um deles, nos corredores da Faculdade de Direito de Lisboa, onde nos cumprimentávamos vagamente –, me explicassem para que servem as convenções e tratados internacionais que Portugal ratificou e as leis penais que, no nosso ordenamento jurídico, punem determinadas condutas, a não ser para que sejam aplicados.
Gostaria que me explicassem o significado das limitações e restrições à liberdade de expressão, em países democráticos como o nosso, constantes do n.º 2, do art. 10.º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a mesma que criou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, quando estipula que o exercício dessa liberdade, “porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido” a certas “restrições ou sanções previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática” para, entre outras, “a protecção da honra ou dos direitos de outrem”.
E que me explicassem como é que a expressão de ideias racistas e xenófobas, quando ofendem a honra e a consideração de outras pessoas ou grupos, em razão da raça ou da etnia, entre outras, que é um delito no nosso ordenamento jurídico e não só, que atenta contra o direito de outras pessoas ou grupos, não tem de estar excluído da liberdade de expressão e se pode colocar a questão da censura prévia.
Já agora, gostaria também que me explicassem o significado da alínea a), do art. 4.º, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 4-1-1969, que entrou em vigor no ordenamento jurídico português a 23-9-1982 – razão por que me parece que vincula Portugal –, quando estabelece que os Estados Partes se obrigam a declarar delitos puníveis pela lei a difusão de ideias fundadas na superioridade ou no ódio racial, entre outras condutas aí enunciadas.
A Assembleia da República, através do art. 240.º do Código Penal, procedeu à criminalização da discriminação e incitamento ao ódio e à violência e, a 23 de Agosto de 2017, alterou a redacção dessa norma, de modo a tornar mais abrangente o seu n.º 2, cuja alínea b) criminaliza a difamação ou injúria de pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, retirando a exigência do dolo específico, “com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar” que era requisito do crime na redacção anterior e que “desapareceu” na redacção actual.
Fê-lo apenas para enfeitar e mostrar que sim, também temos a norma penal?
Ou só se aplica quando os agentes do crime não fazem parte da academia?