A máquina Phoenix, a fúria dos Shame e a nova vida que são os Ezra Collective
Num dia menos concorrido do que a véspera, o Super Bock Super Rock programou uma armada francesa, da qual, sem deslumbrar, se destacaram os mais aguardados da noite, os Phoenix. Marca mais forte deixaram o punk visceral dos Shame e as mutações jazz dos Ezra Collective.
Sexta-feira foi, curiosamente, um dia sob o signo do french touch, se tomarmos a expressão num sentido lato. Dado que o peso anglo-saxónico é uma realidade de há muito e que esse peso se mantém nos grandes festivais de Verão com a música pop como centro, ter quatro nomes franceses em destaque é realmente curioso. Um deles, ou melhor, uma, Héloïse Letissier, a mulher que lidera Christine and the Queens, disse alimentar-se de “emoção, suor e lágrimas”. Ao longo do segundo dia de Super Bock Super Rock, caso tivesse acompanhado os vários concertos, teria tido diversos momentos para se saciar.
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Sexta-feira foi, curiosamente, um dia sob o signo do french touch, se tomarmos a expressão num sentido lato. Dado que o peso anglo-saxónico é uma realidade de há muito e que esse peso se mantém nos grandes festivais de Verão com a música pop como centro, ter quatro nomes franceses em destaque é realmente curioso. Um deles, ou melhor, uma, Héloïse Letissier, a mulher que lidera Christine and the Queens, disse alimentar-se de “emoção, suor e lágrimas”. Ao longo do segundo dia de Super Bock Super Rock, caso tivesse acompanhado os vários concertos, teria tido diversos momentos para se saciar.
Nenhum desses momentos pertenceu, porém, à armada francesa completada com o nome mais aguardado da noite, os Phoenix, com a cantora e também actriz Charlotte Gainsbourg, filha de Serge e de Birkin, e com Vincent Fenton, o multi-instrumentista que assina FKJ. Para emoções ao rubro, momentos vivos, actuantes, transformadores, tivemos de procurar outros nomes, a outras horas. Chegaram ao final da tarde, com os turbulentos e endiabrados Shame. Chegaram ao início da noite, com uns imaculados Capitão Fausto. Chegaram noite alta, quando o novo jazz britânico se apresentou no Super Bock Super Rock perante algumas centenas (não muito público, portanto, mas o suficiente para fazer a festa com os Ezra Collective – nome que, certamente, as ditas centenas não mais esquecerão).
O novo espaço em que o Super Bock Super Rock, neste seu regresso ao Meco, se instalou na Herdade do Cabeço da Flauta, planície sem relevo, mas também sem sombra, aquecia sob o sol quente. Enquanto a maioria do público descansava no campismo ou, ainda longe, se punha a caminho do festival, um pequeno aglomerado erguia os dedos em “V” e gritava uma palavra de ordem imortalizada na cultura popular portuguesa via Valentim Loureiro: “Gon-do-mar! Gon-do-mar!” Eram os Conjunto Corona e o seu hip-hop, seriíssimo no humor nonsense e no beat a glorificiar o bas fond, a falarem de gentrificações, de comércio imoral entre nações, de sexo sem pudor e, inevitavelmente, de Chino no olho, a canção ícone com que se despediram.
O sol continuava abrasador quando os portuenses Fugly suaram tudo o que havia para suar ao sabor do punk’n’roll de aceleração hardcore e solo Motörhead, ao sabor de canções que também tocam o nervo pop dos Wavves ou agitação neovelvetiana – trouxeram música do álbum Millennial Shit, trouxeram a música que fizeram antes e música que acabaram de fazer e houve mini mosh pit a abrir-se entre o público. Durante a tarde e até o sol cair, excepção feita ao delicado encontro entre Iron & Wine e os Calexico que serviu de aragem refrescante ao correr das horas, o Super Bock Super Rock foi um empenhado ataque decibélico – música enquanto agitação e intensidade.
Afinal, no mesmo palco por onde passaram os Fugly actuariam ainda os conimbricenses The Twist Connection, banda que desdenha serenidade enquanto houver nem que seja um corpo preparado para dançar o balanço bem medido e o riff desenhado com precisão. Afinal, entre Fugly e Twist Connection iniciou-se a actividade no palco principal. A responsabilidade coube aos Shame, britânicos de sangue na guelra em que se destaca o vocalista Charlie Steen, que se apresenta de camisa bem metida dentro das calças, mas que acabará o concerto de tronco nu, depois de a camisa se ir desgrenhando cada vez mais, e o baixista Josh Finerty, dínamo descontrolado que, nas suas correrias tresloucadas e cambalhotas, dá correspondência visual à energia da banda, visceral, speedada, neurótica.
Os Shame são como que pub rock que, em vez de incendiar o pub, prefere terraplená-lo. São punk sem nostalgia, animado pelas ansiedades e frustrações com que aqueles corpos e aquelas mentes se deparam hoje – nesse sentido, apesar de serem banda convencional, há algo que os aproxima de uns Sleaford Mods. Só têm um álbum, Songs of Praise, mas é uma daquelas colecções de canções capazes de levar sei lá quantos miúdos a pegar em guitarras, baixos, microfones e baterias, e a levar outros tantos que já não são miúdos a sentirem novamente algo quente a pulsar nas veias. Principalmente quando canções como Concrete, Dust on trial ou One rizla são tocadas com aquela urgência. Quando Steen canta agarrado ao público, quando canta “I never felt human before” como se apenas o grito (e a alegria de estar em palco e o humor seco) oferecesse salvação. “Obri-fucking-gado”, repetiu uma e outra vez. Cá em baixo, o público fervoroso que os acompanhou e que por eles se deixou contagiar devolveu o agradecimento.
Uma inesperada debandada
Num segundo dia de festival em que o público marcou presença em número consideravelmente inferior ao da véspera, não havendo portanto a registar as habituais dificuldades de acesso e saída do recinto – Lana del Rey, Metronomy e os The 1975 terão sido, quinta-feira, um atractivo para as massas que não encontrou repetição –, tornou-se ainda assim evidente que os Capitão Fausto reservaram para si lugar especial no coração melómano português. No palco EDP mostraram as canções imaculadamente pop, cuidadosamente buriladas, do mais recente A Invenção do Dia Claro (Boa memória, Maneiras más, Amor, a nossa vida), mesclando-as com mestria com um passado feito das guitarras nervosas de Gazela ou dos deliciosos arranjos de Têm os Dias Contados. Quer sejam as de ontem, quer sejam as de hoje, o muito público que os acompanha tem cada uma das canções na ponta da língua. Toma-as verdadeiramente como suas (que mais pode uma banda querer?). Mais tarde, já noite caída sobre a planície, o mesmo efeito parecia amplificar-se, com outra banda como protagonista.
Foi o último concerto da digressão e os Phoenix estavam muito agradecidos pela multidão que os viera ver ao Super Bock Super Rock. Era realmente uma multidão – o festival já viu muitas multidões maiores ao longo dos anos, mas no contexto da noite de sexta-feira, ninguém superou a dos Phoenix. Porém, aproximava-se o concerto da hora de duração, apontavam os relógios para a meia-noite, e parte da multidão começa a debandar.
Não porque o concerto dos franceses que deram french touch ao (dito) novo rock tivesse sofrido qualquer sobressalto. Os Phoenix são máquina afinada e actuaram como tal do princípio ao fim. Não têm nada de verdadeiramente memorável, mas há neles uma capacidade de fazer de cada canção um pedaço de melodia imediatamente trauteável, ora mais vitaminada, ora colando-se a sintetizadores tropicais, ora aproximando-se de mecânicas Daft Punk ou das guitarras angulares dos Strokes, que os transformou inesperadamente em fenómeno de massas.
Momento chave: Wolfgang Amadeus Phoenix, o álbum de 2009 que os transformou em estrelas mundiais. É dele que sai uma porção generosa de um alinhamento (Lisztomania, Love like a sunset, Armistice, Girlfriend) que passou também pelo que o antecedeu (Long distance call) e pelo que chegou depois (Trying to be cool).
Quando dedicaram Rome ao “génio absoluto” Phillipe Zdar (membro dos Cassius, produtor dos Phoenix, falecido em Junho), já tinha acontecido. Quando anunciaram a última canção, 1901, quando no decorrer dela Thomas Mars atravessou o corredor fronteiro ao palco e fez crowd-surf à esquerda (e ergueu-se sobre o público), e fez depois crowd-surf à direita (e ergueu-se novamente sobre o público), já parte do público partira noutra direcção. A multidão inicial transformara-se em meia multidão – a outra metade estava então a acompanhar no palco EDP esse homem orquestra, homem pista de dança portátil que assina FKJ.
Naquele mesmo palco, ouvíamos antes a esteticamente inatacável Charlotte Gainsbourg, figura esfíngica entre a luz forte das molduras de néon que transformavam o palco em cenário futurista, tão apelativo quanto o som texturado que se move entre divagações psicadélicas e electrónica com Daft Punk no horizonte – pena que pareça faltar a essa forma as canções que a sustentem, o que leva a que o entusiasmo inicial esmoreça no decorrer do concerto.
Quanto a Christine and the Queens, criação de Héloïse Letissier que antecedeu os Phoenix no palco principal, revela uma ambição cénica (corpo de bailarinos em coreografias elaboradas, pirotecnia em palco) que é traída pelo anacronismo das canções, presas entre fogachos de Peter Gabriel da década de 1980, barroquismos de Kate Bush e pedaços do funk sintético de Prince, amalgamados, nos piores momentos, numa desinspirada mistela eurovisiva. Louve-se, ainda assim, a mensagem de inclusão, de respeito e aceitação da diferença como riqueza, que se manifesta nas letras e nas coreografias. Assinale-se também a generosidade da sua entrega, a comunhão procurada através de uma versão a capella de Heroes, o clássico de David Bowie que partilhou com o público. Dito isto, avancemos algumas horas.
Palco Somersby, 1 da manhã. Subiram a palco os Ezra Collective. Fizeram-no outra vez. Não eles exactamente, que esta foi a sua estreia em palcos portugueses. Fizeram-no outra vez os representantes dessa tão estimulante nova vaga do jazz britânico que nos deu Nubya Garcia ou Shabaka Hutchings e os seus Sons of Kemet – autores de concertos de destaque no último Nos Primavera Sound. “As coisas que nos tornam semelhantes são muito mais do que aquilo que nos separa”, dirá na introdução Femi Koleoso, líder de banda e portentoso baterista. Estava a fazer uma declaração humanista, mas podia estar a falar da música da sua banda.
Uma bateria, um baixo eléctrico, um saxofone, uma trompete e um órgão. Um combo afinado no propósito de criar uma música sincrética, extremamente física, que se alimenta da energia que oferece e que o público lhe devolve. Um movimento contínuo, um frenesim contagiante de afrobeat e de dub, de ritmos quebrados trazidos da electrónica a colarem-se às experiências funk de Herbie Hancock em Head Hunters. O que fazem é jazz, disseram noutro momento de interacção com o público. Sempre que tocam têm em si Ella Fitzgerald, Miles Davis, John Coltrane e Charles Mingus, explicaram. O que fazemos é exprimir o que somos, continuaram. E por isso, acentuaram, também encontramos neles Fela Kuti, Skepta, Kendrick Lamar e Janelle Monáe. Acabam de o dizer e avança o saxofonista para a frente do palco.
Tocam uma versão de Sun Ra e levam o público a dançar, feliz, extasiado, aquele novo Saturno que os Ezra Collective lhes apresenta de forma tão feliz, de forma tão febril. Aqueles que assistiam eram apenas uma pequena porção dos tantos que, sensivelmente à mesma hora, acompanhavam Kaytranada no palco principal, mas as marcas que deixaram serão certamente indeléveis. Emoção, suor e lágrimas e uma série de coisas mais. Nova vida a acontecer perante os nossos olhos.
O Super Bock Super Rock termina este sábado com concertos de Janelle Monáe, Migos, Mike El Nite e Prof Jam, entre outros.