Do “calor exagerado” à “sensação de sucesso”: a história do primeiro transplante em Portugal

Há 50 anos, o cirurgião Linhares Furtado fez o primeiro transplante de um órgão vital no país. O dia coincidiu com a chegada do homem à Lua.

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O cirurgião Linhares Furtado Adriano Miranda

O dia 20 de Julho de 1969 começou cedo para Alexandre Linhares Furtado. Habitualmente, o cirurgião costumava chegar ao hospital da Universidade de Coimbra, então na Alta da cidade, pelas 7h30. Não se recorda ao certo, já passaram 50 anos, mas admite que, naquele domingo de Verão, tenha chegado mais cedo, para tratar dos preparativos daquele que viria a ser o primeiro transplante de um órgão vital em Portugal.

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O dia 20 de Julho de 1969 começou cedo para Alexandre Linhares Furtado. Habitualmente, o cirurgião costumava chegar ao hospital da Universidade de Coimbra, então na Alta da cidade, pelas 7h30. Não se recorda ao certo, já passaram 50 anos, mas admite que, naquele domingo de Verão, tenha chegado mais cedo, para tratar dos preparativos daquele que viria a ser o primeiro transplante de um órgão vital em Portugal.

O dia coincide com outro marco histórico. Mais tarde, ao início da noite, o módulo Eagle, da missão Apolo 11, aterrava na Lua, transportando consigo os astronautas norte-americanos Neil Armstrong e Buzz Aldrin, que só pisariam a superfície do satélite já no dia 21.

Hoje com 85 anos, Linhares Furtado conta ao PÚBLICO que a memória mais marcante que conserva desse dia de “calor exagerado” é a sensação de sucesso no final de “um transplante que correu muito bem” e que durou entre quatro a cinco horas. Tratou-se de um procedimento com dador vivo, de doação de um rim entre irmãos. Quanto à emissão da RTP, que transmitiu a odisseia dos norte-americanos, o cirurgião refere apenas que “é possível” que tenha visto parte. Por esses dias, a sua atenção estava centrada noutro ponto.

A missão lunar acabou por atrair o protagonismo mediático, algo que diz não o incomodar: “São duas coisas de natureza tão diferente. A projecção mediática de uma ida à Lua é outra coisa e aqueles dois homens arriscaram a vida”, afirma. “Isso é que é heroísmo”, acrescenta, na conversa que teve lugar no escritório da sua casa, em Coimbra.

Se a corrida espacial entre soviéticos e norte-americanos teve o primeiro episódio em 1957, ano em que a União Soviética lançou o primeiro satélite artificial, o Sputnik I, a preparação da equipa que Linhares Furtado liderou decorreu ao longo de dois anos, recorda. Era preciso “actualizar o conhecimento científico”, mas também preparar as condições dentro de um “velhíssimo hospital”, então instalado nos antigos edifícios de S. Jerónimo e do Colégio das Artes, que nem ar condicionado tinha.

O transplante correu de feição. No entanto, estava o paciente para ter alta quando levou uma injecção para evitar rejeições. Deixou de urinar, recebeu tratamento e voltou a conseguir fazê-lo. Mas o quadro complicou-se e o rim perdeu-se. O doente “viveu ainda uns tempos em diálise”, mas acabou por morrer.

Apesar do desfecho, esse procedimento seria o primeiro marco de uma carreira em que foi pioneiro na transplantação de vários órgãos vitais, tendo introduzido também técnicas inovadoras, nomeadamente na área da oncologia. Dirigiu o serviço de urologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) entre 1967 e 2003 e teve uma incursão pela política, com uma passagem pela Assembleia Nacional entre 1969 e 1973.

Dos Açores para Coimbra

Um de seis irmãos de uma família sem histórico de estudos universitários, Alexandre Linhares Furtado nasceu em 1933, na Fajã de Baixo, no concelho de Ponta Delgada. Chegou a ter a intenção de estudar física nuclear (a bomba atómica era então uma novidade) na Universidade da Pensilvânia, mas a “afectividade familiar” acabou por lhe moldar o percurso de outra forma. Foi muito por causa da mãe, explica: “Sofria muito com a minha ausência. Chorou durante 24 horas e eu desisti.” O destino acabou por ser a Universidade de Coimbra, ainda assim mais próxima de casa. Em 1959, licenciou-se em medicina com média de 19 valores e concluiu o doutoramento em 1965, seguindo também uma carreira de docência na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).  

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Adriano Miranda

Depois do transplante pioneiro em 1969, só voltou a efectuar um procedimento semelhante já em 1980. Foi igualmente um transplante de rim, mas com dador já cadáver, também o primeiro do género no país. “Transplantei um dos rins aqui e mandei o outro para o meu colega, o doutor João Pena, para Lisboa, que também foi um êxito”, recorda.

Porque demorou tanto tempo entre as duas operações? “A seguir ao nosso [em 1969], Lisboa também iniciou a transplantação renal, mas não teve êxito. Eu não queria voltar a fazer um transplante a partir de um dador vivo, preferia fazê-lo a partir de um cadáver”, explica. Preponderante foi também o processo legislativo para a doação de órgãos depois da morte, refere, acrescentando que não era uma corrida e que “também não queria voltar a ser o primeiro”.

As circunstâncias acabariam por determinar o contrário. “Surgiu, por acaso, esse cadáver, ainda com o coração a bater.” A colheita foi feita já com o coração parado, “para não haver especulações”, e o transplante para a mulher de cerca de 50 anos foi bem-sucedido. “Ela só veio a morrer 12 anos depois, com enfarte do miocárdio e com o rim a funcionar”, conta.

Nessa mesma década, em 1987, o hospital mudaria de instalações para um edifício construído de raiz. As salas do bloco operatório dos HUC, onde ainda hoje se fazem transplantes, foram desenhadas de acordo com as orientações de Linhares Furtado e foi lá que o próprio levou a cabo os primeiros transplantes de fígado, do pâncreas e do intestino em Portugal. Também ajudou a criar o primeiro programa de transplantação hepática pediátrica.

Sobre os anos em que se começou a fazer transplantes no país, refere que, mesmo no contexto europeu, era uma novidade “e os resultados muitos maus”. O panorama evoluiu substancialmente e a taxa de sucesso anda pelos 95%, “uma taxa fantástica”, observa. Neste momento, a principal preocupação é com a quebra o aumento da idade média dos doadores. O que, por outro lado, “também quer dizer que morrem menos jovens, felizmente”.

Também o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) o preocupa. Mas, sobre este assunto, a discordância é de base: “Nunca concordei com o modelo desde a formação. O modelo universal e gratuito não é possível num país pobre e com uma procura de serviços de saúde espantosa.” E dá o exemplo das urgências que recebem “300 e 400 doentes num dia”, entendendo que, assim, “não é possível ter um bom nível de prestação de cuidados de saúde”.

No dia em que passam 50 anos do primeiro transplante em Portugal e a um mês de fazer 86 anos, o cirurgião e professor jubilado da FMUC é homenageado por várias entidades, como o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação e a Sociedade Portuguesa de Transplantação, num programa que inclui o descerramento de uma placa comemorativa e um concerto da Orquestra Clássica do Centro. O reconhecimento vem depois de ter recebido o Prémio Nacional da Saúde atribuído pela Direcção-Geral da Saúde em 2011 e de ter sido condecorado com a Ordem do Infante e com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.