Vêm aí os bárbaros
Ninguém precisa de fazer grande coisa para merecer o estatuto de inimigo, mais ou menos público. Basta duvidar. Basta fazer perguntas chatas ou incómodas nalgum lugar ou de alguma forma. Basta, aliás, pensar pela sua cabeça e ter a veleidade de exprimir o seu pensamento.
Reaccionários. Retrógrados. Fascistas. Racistas. Estúpidos. Bestas. Cavalgaduras. Monstros. Energúmenos. Bárbaros. Não há adjectivo vil que os nossos inimigos não mereçam. Para quê esgrimir argumentos com eles? É preciso calá-los, seja de que modo for. Se as mordaças mais subtis não funcionam, há que vergá-los à bengalada, à pedrada, à bastonada, se for preciso à catanada. A lei e a esperteza não aconselham o castigo físico? Então é preciso violentá-los, demolir a sua imagem pública, assassinar-lhes o carácter, apagá-los, usando e abusando dos melhores púlpitos existentes na praça pública. São guaritas de onde se podem apontar armas, que as palavras e as imagens são munições letais. Não são nossos adversários e, por isso, não merecem respeito. São inimigos. Não passam de obstáculos que tentam impedir o percurso das nossas máquinas de arrasto. Querem impedir a abertura de vias de sentido único que, a bem ou a mal, hão-de transformar todos os cidadãos em gente “cosmopolita”, “moderna” e “progressista”, sem “preconceitos”. E isso não podemos permitir.
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Reaccionários. Retrógrados. Fascistas. Racistas. Estúpidos. Bestas. Cavalgaduras. Monstros. Energúmenos. Bárbaros. Não há adjectivo vil que os nossos inimigos não mereçam. Para quê esgrimir argumentos com eles? É preciso calá-los, seja de que modo for. Se as mordaças mais subtis não funcionam, há que vergá-los à bengalada, à pedrada, à bastonada, se for preciso à catanada. A lei e a esperteza não aconselham o castigo físico? Então é preciso violentá-los, demolir a sua imagem pública, assassinar-lhes o carácter, apagá-los, usando e abusando dos melhores púlpitos existentes na praça pública. São guaritas de onde se podem apontar armas, que as palavras e as imagens são munições letais. Não são nossos adversários e, por isso, não merecem respeito. São inimigos. Não passam de obstáculos que tentam impedir o percurso das nossas máquinas de arrasto. Querem impedir a abertura de vias de sentido único que, a bem ou a mal, hão-de transformar todos os cidadãos em gente “cosmopolita”, “moderna” e “progressista”, sem “preconceitos”. E isso não podemos permitir.
Ninguém precisa de fazer grande coisa para merecer o estatuto de inimigo, mais ou menos público. Nem é preciso ser ferrenho adversário do “progresso” e da “evolução civilizacional”, militando contra a necessidade de algumas “mudanças de mentalidade”. Basta duvidar. Basta fazer perguntas chatas ou incómodas nalgum lugar ou de alguma forma. Basta servir de “advogado do diabo” e pôr os seus ouvintes ou leitores a pensar. Basta, aliás, pensar pela sua cabeça e ter a veleidade de exprimir o seu pensamento. Na melhor das hipóteses, haverá sempre algum sósia daquele agente da PIDE que, nos tempos áureos da caquética senhora, dava bons conselhos aos presos, revestindo as suas palavras do melhor senso: “Para que anda o amigo metido nestas coisas? Tem opiniões? Diga-as à sua mulher, debaixo dos lençóis. Converse com os seus botões. Mas não cante de galo nos cafés. Evite essa mania de escrever nos jornais... Não se meta em políticas...” Na pior, terá doravante a vida negra, a não ser que alguém lhe guarde bem as costas.
Nos tempos que correm, os inimigos já não são apenas gente diferente, com outros costumes, outra aparência (considerada “feia”), outros odores (inevitavelmente “fétidos”), com atitudes e costumes estranhos, ditos “incompreensíveis”. Tal percepção manipulada e manipuladora, bem analisada por Umberto Eco em 2008, serve sobretudo para a identificação de bodes expiatórios “numa sociedade que [...] não consegue já reconhecer-se” e, por isso, recusando encarar os verdadeiros problemas que a vão corroendo, precisa de encontrar “um obstáculo em relação ao qual seja medido o [seu] sistema de valores”. Nesse “inferno na Terra” que a humanidade vai construindo ao desfigurar o Outro, ninguém está livre de se ver transformado, de um momento para o outro, num alvo a perseguir e a abater. Basta não alinhar em carneiradas. Basta ter a coragem de vociferar que o rei vai nu ou possuir, pelo menos, a capacidade de apontar em público as contradições, as falácias, as consequências nefastas ou o retrocesso ético e moral dos caminhos mais apontados e seguidos.
Ninguém ignora o que vai sucedendo na praça pública ao bom nome de quantos apontam semelhanças entre o sistema de quotas na política e a pretérita “Câmara Corporativa” da constituição de 1933, dos que se opõem ao revisionismo histórico, daqueles que são contra o aborto ou a eutanásia, dos que denunciam o tráfico de influências nas mais diversas instâncias do país, de quantos têm posto à vista o nepotismo e a endogamia que rasuram a igualdade de oportunidades, dos homens e mulheres que não confundem a ecologia com a imposição de estilos de vida, dos cidadãos que vão pondo a nu a erosão do mundo rural e da sua identidade, das vozes que afirmam ser a “discriminação positiva” em muitos domínios uma recusa da valorização do esforço e do mérito e um ataque à igualdade de oportunidades, de quantos continuam a defender que todos os cidadãos são iguais nos seus direitos e nos seus deveres, seja qual for a sua origem, a sua residência, a sua cor, o seu estatuto económico e social ou a sua identidade cultural. Neste momento da nossa civilização, em que “Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem”, é frequente vermos os promotores, conscientes ou inconscientes, da barbárie e os seus acólitos qualificarem os outros como “bárbaros”. Sempre que “o inimigo não existe, há que construí-lo”, como bem viu o autor de Cinco Escritos Morais. Erodida ou destruída a hierarquia de valores, é mais fácil reinar estando o mundo dividido e, sobretudo, confundido e confuso. Há quem tenha consciência disso e dessa via tortuosa e esburacada se aproveite.
Continua actual a análise apresentada há uns anos por Agostinho da Silva. No seu ensaio “Bárbaros à Porta”, publicado n’As Aproximações, avisou-nos de que “[…] a língua do verdadeiro entendimento, da fraternidade, da convivência, das ideias mais sugeridas que impostas […]; a língua, quase diríamos de silêncio, que levava a que se entendessem os espíritos sem que de mais vibrasse o ar, vai sendo cada vez mais sufocada pelos que sabem gritar […]; a época é de vitória para quem empurra e clama […]”. Segundo o filósofo, essa barbárie – de braço dado com as mais variadas formas de gritaria e de ruído, num mundo em que “tudo o que não for compreendido será destruído” – “não se caracteriza nem por uma raça nem por um credo: é uma forma generalizada de comportamento humano. E todas as circunstâncias são de molde a favorecer a sua vitória: uma vitória temporária, mas que pode durar séculos”.
A razão está portanto do lado daqueles que têm apontado no nosso tempo e no nosso espaço uma muito grave erosão da democracia, logo da dignidade da pessoa humana. Para aquilatarmos o que está a suceder, já não chega identificarmos e arrolarmos as mais habituais formas de exclusão económica e social. Temos de saber identificar e expor em público aqueles que as exploram e, dizendo combatê-las “generosamente”, antes contribuem para a sua manutenção transfigurada por muito mais tempo, ao manipularem as legítimas expectativas dos seus semelhantes, transformando-as em material de construção de um poder discricionário. Não têm qualquer intenção nem vontade de resolver seja o que for. Tudo tem, na sua estratégia, o mesmo valor instrumental. Os outros, sejam eles quem forem, não passam de degraus que pretendem pisar e subir o mais depressa possível e sem quaisquer atropelos pelo caminho. Nem que seja espezinhando a cabeça daqueles que ousarem levantá-la. Nem que seja qualificando como “bárbaros” ou inimigos, sem direito à cidadania plena, todos quantos atentarem contra o seu desejo de domínio ou de manipulação.